José Meireles Graça .
Morreu Isabel, que encarnava o que de melhor tem o Reino Unido. Não porque tivesse escrito como Shakespeare, ou brilhado na ciência como Isaac Newton, ou composto como Haendel (cidadão importado, é verdade), ou sido sequer uma actriz como Vanessa Redgrave ou uma estrela pop como um dos Beatles.
Não escreveu, não compôs, não filosofou, não foi reformadora social nem descobriu nem inventou. E todavia sentimos a sua morte como uma perda e o seu tempo, já, com saudade.
Foi, com inalterável serenidade, o topo de um conjunto de instituições que garantem que o Reino Unido, que já foi um grande império mas agora não é, que já foi o país mais desenvolvido mas, nisto e naquilo, foi ultrapassado, que já teve, por exemplo, dos melhores automóveis, cujas marcas e carácter são agora estrangeiros, e que nos domínios em que está no pódio tem numerosa, e combativa, companhia – continua a ser um exemplo de sociedade que não quer copiar ninguém, quando de todos os lados lhe invejam e respeitam as instituições.
A democracia, primeiro, que como nasceu de uma longa consolidação, e não de revoluções nem golpes de Estado, se lhe incrustou como fazendo parte do código genético; o Estado de Direito, tão enraizado que dispensa uma Constituição formal; e o filho rebelde que se separou por obra e graça de pais fundadores que, quando deixaram de ser britânicos, não deixaram de o ser culturalmente, para criar a superpotência que marcou o século XX, e através dela o resto do mundo, mais para o bem do que para o mal: são exemplos das boas razões pelas quais o Reino Unido conta.
Foram quem mais tenazmente se opôs à hegemonia nazi; e que, desconfiados da supraestrutura burocrática, enxerida, inimiga das diferenças nacionais e fatal e tendencialmente antidemocrática que é a União Europeia, bateram com a porta. Há mais povos que tivessem farejado a rasoira anti-pátrias e a terraplanagem europeísta das diferenças? Não há, e foi in extremis, que as novas gerações, lá como em boa parte das democracias do continente, parecem acreditar que a história contemporânea se deve basear na ignorância da pregressa, na obliteração de todas as tradições e na entrega do poder a técnicos que ninguém elegeu.
A instituição monárquica britânica é o símbolo e garante de muitas coisas, das quais a principal é a continuidade, para usar a palavra que todos os encómios de circunstância usam, et pour cause. E Isabel interpretou tão inexcedivelmente o seu múnus que não é apenas na Inglaterra, na Escócia, no País de Gales, na Irlanda do Norte e nos países da Commonwealth que por estes dias se lhe prestam homenagens sentidas.
E então, nós por cá temos alguma coisa a aprender com a carreira e a morte desta santa civil?
Algumas coisas ocorrem. Muitos dos nossos bisavós, sobretudo lisboetas, instituíram a República porque, para o país decadente se desenvolver, era, acreditavam, preciso mudar o regime. Não apenas a decadência não se reverteu como o que tivemos foi a balbúrdia da I República, a que Salazar pôs cobro. Este cultivou sempre cuidadosamente relações com monárquicos e republicanos, sem jamais confessar as suas simpatias porque a escolha, qualquer que fosse, se definitiva, era divisiva e portanto não consolidava o poder do Estado Novo.
Houve países que se desenvolveram conservando a monarquia e outros liquidando-a; há monarquias em países desenvolvidíssimos, como os nórdicos, e em outros relativamente atrasados, como a Tailândia; e a Espanha, que tem muitos problemas, não teria certamente menos se, em vez de Filipe VI, se desse à maçada de eleger já não digo um Marcelo (personagem que, para felicidade dos locais, não deve existir) mas um político sénior qualquer. Donde, se a lógica não for uma batata, o regime por si não garante nada, excepto, se for monárquico, uma visibilidade acrescida porque a atracção que uma tal instituição pode exercer só funciona para o exterior se se basear numa tradição histórica, tanto mais respeitável quanto mais antiga – o que significa que uns podem e outros não.
Nós poderíamos. Mas as raras sondagens sobre o assunto parecem indicar que em Portugal o sentimento antimonárquico está fortemente enraizado. Não pode ser pelo amor às realizações da República que, se garantem alguma coisa, é a nossa teimosa manutenção na cauda do desenvolvimento; nem pela aversão à personalidade concreta do putativo rei, que pouca gente conhece; nem pela necessidade de unidade, que a que existe é suficiente, ou reforço da nossa identidade, que temos de sobra; nem pela sombra que a instituição poderia fazer às ambições políticas – a presidência da República nem está ao alcance nem é sequer particularmente atraente para a maior parte dos políticos, nem é um lugar de poderes exaltantes para quem se imagine com vocação de grande reformador.
Então – porquê? A chave entendo que está no igualitarismo que mais de quatro décadas de propaganda instilaram no eleitorado: há pobres porque há ricos, a demolição dos segundos é necessária para avançamento dos primeiros, a desigualdade originada pelas diferenças de meios ao nascimento é em si uma clamorosa injustiça e que é lá isso de um tipo que manda em nós porque é filho, neto e tetraneto de outros que se repoltrearam em sedas e que se distinguiam por grandes bigodes e por gostarem de touradas, sem todavia serem pegadores? Não pode ser.
Claro está que não poucos pais se esforçam e fazem sem reclamar tremendos sacrifícios para que os filhos não apenas tenham uma vida melhor do que a deles mas também do que as dos que não fizeram sacrifício nenhum, mas isso, acha o cidadão, é se não der muito nas vistas. Que se o camarada tiver feito fortuna tem garantido o Inferno, para começo de conversa, e os descendentes a AT, como é de justiça e os partidos de esquerda defendem com os dedos justiceiros frementes de indignação virtuosa.
O princípio monárquico é um de desigualdade consagrada nas leis e nos costumes, donde as pessoas de esquerda não o podem, geralmente, subscrever senão quando não tenham outro remédio, como já sucedeu com primeiros-ministros do Reino Unido como, parece, Harold Wilson, a tomar como verdadeira a alegação que disso se fez no The Crown.
Claro que do ponto de vista prático a instituição resulta provavelmente mais barata para o erário público do que a presidencial, e que necessidades de afirmação e notoriedade, somadas à relativa independência da opinião pública, levam ao cultivo de actividades mais ligadas a tradições que precisam de amparo e menos à popularidade popularucha. E a prova de que a colectividade carece, no nosso como em todos os países, de pompa e circunstância, é que as instituições republicanas não a dispensam, normalmente macaqueando formas que, no caso delas, revestem uma substância vazia.
Há, é claro, mais razões para o republicanismo, sobretudo no contexto de limitação de mandatos, que limita o aparecimento de vícios de poder, desde logo a corrupção, como na frase dos políticos e das fraldas, atribuída a Eça. Pode porém dizer-se que monarcas ou membros de famílias reais são mais corruptos do que presidentes e suas entourages? Pode – se se estiver de má-fé.
A tradição é a democracia dos mortos, como disse um amigo meu devoto de Chesterton e que, tal como eu, não é um militante monárquico. Conhece o país e os nossos conterrâneos, sabe do que a casa gasta e está certo de que o regresso à monarquia não resolveria por si o nosso principal problema, tal como o seu abandono não resolveu.
Numa prece assumidamente de gosto duvidoso, que publiquei no Facebook no dia da morte, disse: Ó deuses, fazei com que Marcelo não diga nada. Isabel merece respeito.
Marcelo já disse, caracteristicamente, as banalidades que achou adequadas, nas quais, a propósito de Isabel, aproveitou para falar de sua exaltante pessoa e, como de costume, dos triunfos que acha ornam a massa que o aplaude.
Isabel merece respeito. E os britânicos, por estes dias, também, além de inveja. Porque conservam a sua herança – nós não.
Artigo publicado pelo Observador em 2022/09/16, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.