Gonçalo Galvão Gomes .
Há cerca de um ano, assistimos a um dos processos mais desonrosos desde o estabelecimento da democracia em Portugal: a anulação dos votos do círculo Europa nas eleições legislativas. Apesar das diversas manifestações ao mais alto nível, do Primeiro-Ministro ao Presidente da República, conforme a tradição nacional, não só não se tomaram medidas para identificar os responsáveis, como também não se implementou qualquer ação para alterar e uniformizar o sistema de voto nos círculos da emigração.
Em prol da verdade, talvez seja iníquo atribuir a responsabilidade deste problema a um evento singular, ou mesmo a um círculo eleitoral específico, uma vez que se trata de uma prática institucionalizada, reiterada e que também ocorre no círculo eleitoral Fora da Europa.
Antes de prosseguir, permitam-me efetuar um breve resumo dos eventos que ocorreram durante as eleições legislativas de 2022. Na sequência de um protesto por parte do PSD, foram considerados nulos cerca de 80% dos votos do círculo eleitoral da Europa de 2022. O modelo de votação nesta eleição, por defeito, é o voto postal, e o motivo subjacente a esta decisão, residiu no facto de os envelopes que continham os votos em questão, terem sido remetidos sem a respetiva cópia do cartão de cidadão. Conforme o Manual dos Membros das Mesas Eleitorais, em vigor na altura, “considera-se voto nulo aquele que não contenha fotocópia do cartão de cidadão ou bilhete de identidade” (exigência revogada após a eleição), o que redundou, de forma indubitável, na anulação do referido boletim de voto.
Embora se tenha tornado evidente, mesmo para o leigo em matéria regulamentar, que os votos desprovidos da devida identificação não deveriam ser contabilizados – ainda que se possa discutir a pertinência desta norma, o que constitui outro tópico -, o Partido Socialista, bem como o Partido Social Democrata em eleições anteriores, decidiram de forma conveniente (e combinada até à última eleição), desconsiderar esta regulamentação, agindo como se lhes competisse a decisão sobre as leis eleitorais, à revelia de toda a normativa instituída.
Na prática, os cabeças de lista destes círculos e os responsáveis pelas mesas por eles nomeados, passaram a assumir o papel de legisladores e juízes, encarregados de determinar quais as regras eleitorais a aplicar e quais as que se devem convenientemente ignorar, o que não só configura uma transgressão das leis da República, mas também revela a atitude dos partidos políticos, especialmente do Partido Socialista, face às normas democráticas. Mesmo após a repetição da eleição num dos círculos, com o consequente atraso na formação do governo e o dispendioso custo adicional de cinco milhões de euros (mais de quatro milhões, só para enviar novamente os envelopes com os boletins), permanece sem clarificação, quer pelo Ministério da Administração Interna, quer pelo governo anterior (que, não obstante, se mantém no poder), quer ainda pelo Presidente da República, quem são os responsáveis pela decisão de contar votos que deviam ter sido anulados e que medidas punitivas foram ou serão aplicadas em consequência deste acontecimento.
No entanto, a descredibilização da política em relação às comunidades portuguesas no estrangeiro, não se limita a este ponto. O processo de votação em vigor para os cidadãos portugueses que residem no estrangeiro é, por si só, bastante confuso e disfuncional (mesmo quando não é acompanhado por decisões ad-hoc do partido político que parece mandar nas instituições). Como exemplo, nas próximas eleições europeias (à semelhança das presidenciais), o voto assumirá um caráter presencial, o que implica que muitos portugueses, particularmente aqueles que se encontram a grande distância dos consulados, terão de se deslocar por vezes centenas de quilómetros, caso entendam exercer o seu direito de voto. Além de uma lei eleitoral obsoleta que carece de reforma urgente, é difícil justificar, para além de falta de vontade e de interesse dos legisladores, a existência de dois tipos de votação para a mesma comunidade, em eleições diferentes. A cada quatro anos, assistimos a uma campanha eleitoral onde as promessas sobre a implementação de um sistema de voto uniformizado por via postal, ou a criação de teste piloto sobre o voto eletrónico sucedem-se, contudo, como tantas outras promessas eleitorais, estas tendem a desvanecer-se no dia seguinte às eleições.
Expectativas modestas e recompensa política
Apesar do que possa parecer, seria incorreto afirmar que a política das comunidades, ou pelos menos os cargos a si associados, não se afiguram como uma questão relevante para o partido que lidera o governo.
Em 2019, Berta Nunes, candidata a deputada na segunda posição da lista do PS pelo círculo eleitoral de Bragança, não conseguiu ser eleita. Como prémio de consolação, António Costa fez dela escolha para o cargo de secretária de estado das comunidades. Que experiência se lhe conhecia para desempenhar o cargo? Absolutamente nenhuma, mas em abono da verdade, o cargo de Secretário de Estados das Comunidades, é muitas vezes tratado como um prémio de consolação, uma medalha de participação para perdedores, que têm assim, uma segunda oportunidade de continuar a trabalhar na sua reeleição, enquanto se pavoneiam a passear pelas festas de emigrantes, perdidos entre o racho folclórico e as sandes de leitão.
Mas é preciso fazer justiça, nem tudo foi desfavorável durante o mandato de Berta Nunes como Secretária de Estado. O Centro de Atendimento Consular, inaugurado em Alfândega da Fé, proporcionou assistência vital aos inúmeros compatriotas residentes na Bélgica e no Grão-Ducado do Luxemburgo. Que o governo tenha escolhido o referido município, local onde a mencionada secretária de estado outrora presidiu à Câmara, e no mesmo distrito que testemunhou a sua fracassada candidatura eleitoral em 2019, pode ter sido uma simples coincidência, embora ironicamente sugestiva. No ano de 2022, a sua incansável dedicação ao trabalho foi enfim reconhecida, mas pelos residentes de Bragança que a elegeram como representante no parlamento. Está visto que a criação de emprego é uma política de sucesso.
Mas não podia escrever sobre expectativas baixas e recompensa política sem mencionar o seu sucessor. Em 2021, Paulo Cafôfo perdeu a eleição para a Câmara do Funchal. Em 2022, Ano Novo, vida nova, e Cafôfo é nomeado Secretário de Estado das Comunidades. Claro que não faltaram as visitas às comunidades onde existem mais emigrantes madeirenses, nomeadamente a Venezuela e África do Sul, mas não deixemos que isso, e o facto de também ele não ter nenhuma experiência para o cargo, nos leve a pensar que está a trabalhar para a sua próxima eleição no arquipélago.
Os factos narrados, somados à escolha de deputados cuja subserviência é um critério preponderante (ou exclusivo), resultam numa consequência imediata e altamente desfavorável para o país, a qual merece ser considerada com a devida gravidade: O distanciamento dos cidadãos portugueses emigrados da sua terra natal. Além dos investimentos, aquisições imobiliárias e criação de empregos por meio do estabelecimento de empresas e exportações, os bancos portugueses receberam no último ano a significativa quantia de 3.892,2 milhões de euros em remessas enviadas pelos emigrantes. A manutenção dessa conexão é crucial não apenas do ponto de vista cultural e espiritual, mas também do ponto de vista económico, tendo em vista a sua importância para a economia portuguesa.
Mas para que essa conexão se mantenha, e principalmente, para que estenda às novas gerações de portugueses nascidos fora, é preciso que se deixe de tratar a política das comunidades como uma segunda liga, e se dê a prioridade e a valorização que merece, não só por eles, mas principalmente pelo país.
Artigo publicado pelo Observador em 2023/03/31, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.