Fervores e curiosidades do obscurantismo de Louçã

Pedro Almeida Jorge                                                                                                                                        .

A Igreja de Louçã nunca perdoará João Paulo II pelas suas críticas corajosas e certeiras à ideologia marxista, ao regime soviético e à “teologia da libertação”.

Como seria de esperar, a Jornada Mundial da Juventude e a vinda do Papa Francisco a Portugal foram a ocasião perfeita para os que à esquerda parecem ainda não ter ultrapassado um rancor adolescente pela Igreja Católica procederem, simultaneamente e por contraste, a uma espécie de beatificação de Jorge Bergoglio e à habitual demonização da instituição que o antecedeu e que o sepultará.

Como também seria de esperar, o sumo pontífice dessa que é capaz de ser a segunda maior religião do nosso país foi o seu profeta Francisco Louçã, que por meio de dois artigos no semanário Expresso, quais cartas apostólicas, nos revelou o Novo e o Antigo Testamentos da sua Igreja. No primeiro deles, significativamente intitulado “O problema do Papa é a sua Igreja” (tal como, depreende-se, o único problema de Trotsky fora o Estado Soviético…), Louçã inicia o evangelho de Francisco do seguinte modo: “Cumprindo um festival concebido, como é tão notório, por João Paulo II, de cuja herança se quer afastar, o Papa Francisco veio aqui deixar mais uma mensagem do fim do seu pontificado.” Mais “notório” não poderia ser: ao contrário da Igreja Católica que abre os braços aos seguidores de praticamente todas as ideologias políticas, a Igreja de Louçã nunca perdoará João Paulo II pelas suas críticas corajosas e certeiras à ideologia marxista, ao regime soviético e à “teologia da libertação”, nem por, ainda mais grave, ter impulsionado um evento à escala mundial capaz de agremiar mais jovens do que a beata da esquerda, Greta Thunberg.

Já no segundo artigo, que constitui o Antigo Testamento da Igreja de Louçã, os mártires-profetas são Galileu Galilei e Nicolau Copérnico, vítimas dos “fervores e curiosidades do obscurantismo [católico]”. Quanto às manipulações ali contidas, não poderei fazer melhor do que recomendar a leitura da recente refutação elaborada por Bernardo Motta no Facebook (e respetivas referências), bem como do artigo de Pedro Gomes Sanches no Expresso e do artigo que em tempos o Ricardo Dias de Sousa publicou aqui na coluna da Oficina da Liberdade a respeito do caso Galileu.

Da minha parte, parece-me ser esta uma boa ocasião para recordar um simbólico episódio que infelizmente deve ter passado despercebido ao professor Louçã. Em dezembro de 1980, o Papa João Paulo II, esse suposto vilão obscurantista, convidou por intermédio do Cardeal de Viena Franz König e da Fundação Nova Spes [Nova Esperança], 12 Prémios Nobel, entre os quais Friedrich Hayek (outro dos vilões de Louçã), para um colóquio com vista a uma nova aproximação entre a ciência e a fé.

Foi a partir deste colóquio que, perante um certo desconforto da parte dos cardeais pelo seu uso do termo “superstições”, Hayek passou antes a afirmar que até os agnósticos terão de admitir que devemos a nossa civilização a “verdades simbólicas” (expressão utilizada também no capítulo IX da sua última obra, Arrogância Fatal, onde o liberal austro-britânico aborda “A religião e os guardiães da tradição”).

Segundo uma entrevista com o próprio Hayek [a partir do minuto 1:25:00], para seu espanto, o Cardeal de Viena, um dos mais veteranos e influentes da Igreja Católica, afirmou-lhe que, colocadas as coisas nesses termos, não havia desacordo entre eles. E esta ideia é de facto amplificada pelo próprio Papa João Paulo II no seu discurso aos 12 laureados, quando afirma que “Fé e ciência pertencem a duas diferentes ordens de conhecimento que não se podem sobrepor uma à outra. Contanto que se respeite a distinção entre essas ordens de conhecimento e tanto a ciência como a teologia procedam nas suas especulações sem deixar de atender aos princípios metodológicos peculiares a cada qual, não é de se temer que cheguem a resultados contraditórios.”

Infelizmente, à semelhança de Louçã, parece haver quem, talvez por ignorância, talvez por vontade de fazer as pazes com a Igreja sem dar o braço a torcer quanto ao seu passado recente ou distante, queira passar a ideia à minha geração e às mais novas de que a “vinda” de Francisco representa uma viragem revolucionária na forma como a Igreja Católica encara o mundo e a comunidade em seu redor, ou até na forma como atende às “preocupações” da sociedade atual. Se este “simbólico” episódio não bastar como prova refutadora dessa suposta grande viragem, que se leia por exemplo a encíclica Centesimus Annus (1991) do mesmo Papa João Paulo II (indubitavelmente influenciada por Hayek e pelos “papões neoliberais” na sua refutação dos dogmas comunistas), onde o Sumo Pontífice já então alertava mais do que vincadamente para os perigos da degradação, não só do “ambiente natural”, mas também – como não poderia deixar de ser, numa instituição humanista – do “ambiente humano”.

Note-se também que foram os próprios 12 laureados, incluindo Prémios Nobel da Física, da Química, da Medicina e da Economia, que subscreveram uma declaração onde se afirma o seguinte: “[A] ciência fomentou correntes de pensamento que alteraram a imagem que a humanidade tem de si própria e do seu papel no universo. Isto deixou os seres humanos espiritualmente despojados e num vazio moral. Acreditamos que o cientista deve possuir uma forte sensibilidade ética e desejamos quebrar a tradicional separação – e por vezes mesmo oposição – entre ciência e religião. As igrejas têm claramente um papel positivo a desempenhar na tentativa de alcançar este objetivo e, em particular, reconhecemos que a Igreja Católica está numa posição única para fornecer orientação moral a nível global.”

Que os não-crentes, entre os quais radicalmente me incluo*, se recusem obstinadamente a conhecer e reconhecer a história da época em que vivem e da civilização a que pertencem parece-me, esse sim, constituir um dos mais pecaminosos obscurantismos. É caso para dizer, parafraseando o Papa Francisco, “Professor Louçã, não tenha medo!”

* Quanto a incluir-me “radicalmente” entre os não-crentes, não o faço para me afirmar um “ateu radical” em todas as dimensões. Faço-o porque, não acreditando sequer na existência histórica do personagem Jesus Cristo, parece-me que isso me coloca “pela raiz” no campo dos não-crentes. Certamente a minha posição a este respeito da evidência histórica é até mais extremada do que a da generalidade dos ateus (incluindo a de Francisco Louçã, pelo que se depreende do seu primeiro artigo citado), daí que me pareça fazer sentido colocar essa ênfase na ideia de que, se há alguém que não atribui uma legitimidade transcendente aos ritos da Igreja Católica, esse alguém serei eu. De resto, terei até de admitir um irónico regozijo ao verificar que Louçã, profeta avant-garde da Herança Tricolor, ponta-de-lança do ataque a essa “cultura que… vive do misticismo”, afinal engole como bom fiel a hóstia da historicidade de Jesus, do seu irmão Tiago, dos doze discípulos e da crucificação, ainda que isso essencialmente lhe sirva o conveniente objetivo de, beatificando as primeiras comunidades cristãs – onde “não havia um poder sacerdotal”, onde “algumas assembleias eram dirigidas por mulheres” –, traçar um paralelo para os fiéis da sua própria Igreja, que acreditam que o comunismo primitivo também era todo muito belo e que só o despotismo do imperador Constantino (Estaline…) estragou o paraíso na Terra.

Seja como for, como espero ter deixado claro pelo meu artigo, a minha descrença está longe de significar que não atribuo extraordinária relevância à instituição, às parábolas e ao cabedal (para usar um antigo sinónimo de “capital”) histórico da Igreja. O imaginário bíblico é um dos esteios da nossa civilização, tal como outras mitologias o foram e são para outras civilizações (não dizendo, com isto, que tudo o que está na Bíblia é mito). Não me parece que haja nada que se compare em termos do ascendente moral de que a Bíblia dispõe – não no sentido de ser um documento moralmente recomendável em toda a sua abrangência, mas no sentido de ter conquistado ao longo dos milénios um estatuto inigualável na mente dos homens. Se Tolkien tivesse escrito O Senhor dos Anéis há 2000 anos e esses livros tivessem originado um culto de dois milénios com ascendente moral sobre pais, filhos e netos, em nada de muito relevante os distinguiria da Bíblia. Mas acontece que a Bíblia é o que temos e é o que, em grande medida, aqui nos trouxe. Descartar esse património seria vandalismo civilizacional.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/08/18, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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