Quem define o “discurso de ódio”?

Diogo Saramago Ferreira                                                                                                                                  .

O objectivo último de quem vender às democracias liberais e às suas sociedades livres este monstro demoníaco apelidado de “discurso de ódio” é o condicionamento do que pode ou não dizer.

“A ideia de “discurso de ódio” constitui uma ferramenta política para diminuir o espaço de discussão democrática e implementar uma visão iliberal do mundo. Em última instância, apresenta-se como uma ferramenta totalitária: afirmando querer impedir que certas coisas sejam ditas, quer na verdade determinar o que deve ser pensado.” – Patrícia Fernandes, “O que é isso de “hate speech”? – Parte I”, in Observador 07-11-2022

Um dos traços fundamentais das democracias ocidentais de matriz liberal é (ou devia ser) a defesa quase intransigente do princípio da liberdade de expressão, que tem o seu símbolo maior na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América.

Todos os cidadãos, independentemente da sua condição, devem poder exprimir livremente as suas opiniões, crenças, ideias e, até mesmo, os seus disparates. Só uma sociedade onde as pessoas que a integram não tenham medo ou se sintam constrangidas de dizer o que bem entendem se pode considerar verdadeiramente livre.

No entanto, e infelizmente, temos assistido nas últimas décadas a uma tentativa cada vez mais acentuada “aperfeiçoamento” do conceito de liberdade de expressão o que, invariavelmente, restringe a mesma.

Exemplo disso mesmo é o normal estabelecimento da expressão “discurso de ódio”, que nos entra por dentro de casa, nos dias que correm, a uma velocidade e constância impressionantes. Tudo é discurso de ódio.

Fazemos uma piada com conteúdo sexual? É discurso de ódio.

Abordamos alguma questão relacionada com política de imigração e eventuais cautelas a ter na entrada de imigrantes dentro das nossas fronteiras? É discurso de ódio.

Criamos algum desenho caricatural sobre determinada pessoa ou símbolo? É discurso de ódio.

Se até certo ponto o limite último da liberdade de expressão envolvia o acto de difamação ou injúria de outra pessoa (e, desde 2017, o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência), deixando aos Tribunais e órgãos da justiça a interpretação e verificação da prática de um destes crimes, assistimos a um crescente apetite dos Governos, instituições supra[1]nacionais e outros órgãos de soberania em “definir” o conceito de discurso de ódio e “prevenir” que o mesmo não se verifica.

Depois do advento de organizações da administração pública, como o Observatório Independente do Discurso de Ódio, Racismo e Xenofobia e a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, com carácter consultivo mas, a espaços, também de agente denunciador do “discurso de ódio”, mais recentemente observa-se que também o poder político, de forma directa, pretende “definir” e proibir mensagens ou ideias que signifiquem o propalado “discurso de ódio”. Exemplo disso mesmo sucedeu, já em 2023, na Assembleia Municipal de Lisboa, com a aprovação de recomendações por parte de determinados partidos, sobre este tema.

Mas também, ao nível da Assembleia da República, tivemos em Maio deste ano a aprovação de uma recomendação que vise o Governo a criar um grupo de trabalho que adopte um plano nacional combater discursos de ódio que, entre outras coisas, importaria que se garantisse que  “a atuação do Observatório Independente do Discurso de Ódio, Racismo e Xenofobia abrange as diferentes categorias suspeitas de crimes previstos no artigo 240.º do Código Penal, incluindo o discurso de ódio sexista.”. Isto é, a substituição dos órgãos de polícia e investigação criminal, o Ministério Público e os Tribunais por um qualquer organismo da administração pública, de carácter “independente”, na função fiscalizadora e punitiva dos agentes prevaricadores que andassem a difundir o “discurso de ódio” definido, lá está, pelo poder executivo ou legislativo (do momento).

No final do dia, o objectivo último de quem vender às democracias liberais e às suas sociedades livres este monstro demoníaco apelidado de “discurso de ódio” é o condicionamento do que pode ou não dizer, em público e eventualmente em privado; do que se pode ou não gostar; do que se pode ou não fazer; do que se pode ou não escrever; do que se pode ou não defender.

Quem define o “discurso de ódio”, invariavelmente os mesmos “sábios” de sempre, tem como objectivo principal a domesticação do cidadão e a moldagem do que este pensa. Ou, de outra forma, a substituição do debate das ideias, por mais abjectas que sejam, pelo “controlo preventivo” do que se idealiza como bom ou mau, certo ou errado, perfeito ou imperfeito. Característica típica das sociedades totalitárias.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/09/01, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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