Isabel Menéres Campos .
Conta-se que em 1945, depois do fim da II Guerra, Walter Ulbricht encarregado por Estaline de reorganizar Berlim, quando estava a promover a realização das primeiras eleições e a instalação dos demais organismos, terá dito a Wolfgang Leonhard, escritor alemão, uma frase que resume a estratégia comunista para a recentemente ocupada Berlim: “Deve parecer democrático, mas temos de ter tudo nas nossas mãos”. E antes que os outros três aliados ocidentais entrassem na cidade, os comunistas haveriam de estabelecer no terreno o maior número possível de “factos consumados”, colocando camaradas de confiança em centros de decisão, de forma a que o povo alemão ficasse seduzido pela sua política inicial que parecia encorajar a diversidade democrática.
Lembrei-me disto a propósito da actual situação política portuguesa, considerando que, apesar dos desmandos e da incompetência revelados pelos socialistas, as sondagens revelam, genericamente, que, pelo menos, cerca de 28% dos votantes continuam a confiar no PS para conduzir os destinos do país. Um fenómeno!
Não é preciso ter grande capacidade de análise para perceber que o país foi governado, nos últimos anos, por gente muito pouco competente e muito pouco preocupada com os destinos do país. Basta lembrarmo-nos dos casos do inefável Cabrita, que Costa tardou em demitir, de Tancos, da tragédia de Pedrógão, do escândalo da escolha do Procurador Europeu ou da não recondução de Joana Marques Vidal, da novela da TAP, apenas para mencionar os casos mais mediáticos. E mesmo assim este PS ganhou em 2022 e ganharia novamente as eleições hoje.
Para isto contribui certamente a proficiência comunicacional de António Costa e do próprio Governo, que permite continuar a passar uma imagem positiva na opinião pública, levando a crer que as políticas implementadas (quais?) em matéria de saúde pública, educação, habitação, transportes, têm sido um estrondoso sucesso e aquilo que corre mal é imputável a factores externos como sejam, a guerra, a conjuntura internacional, as intempéries, o Governo de Passos Coelho, os portugueses que acorrem em massa às urgências ou o turismo que teima em querer vir para cá.
Vamos tendo uma aparência de normalidade, de participação democrática e de funcionamento das instituições. Sim, pode parece democrático. Há eleições livres periodicamente, por sufrágio secreto e universal, as regras de organização das instituições vão sendo minimamente cumpridas e continua a haver uma relativa liberdade no funcionamento do mercado.
A verdade é que suportamos a maior carga fiscal de sempre, indispensável para manter os níveis de satisfação dos portugueses em alta, pois há que sustentar os cerca de 750 mil funcionários públicos de um Estado gigante que presta serviços sofríveis e manter amestradas inúmeras empresas que vivem penduradas na encomenda pública ou de mão estendida à espera de subvenções que se desbaratam em nome da sustentabilidade, mas que servem sobretudo para garantir que as empresas privadas se mantenham na dependência da ajuda estatal tanto tempo quanto possível. Este socialismo também vende a ideia de que o lucro e a criação de riqueza são pérfidos e que só se obtêm à conta da exploração desumana de trabalhadores, devendo, como tal ser combatidos e onerados com mais e mais incumbências e regras, ao ponto de cada empresário só poder continuar a sobreviver na sua actividade se obtiver subsídios, pagos com dinheiro dos contribuintes.
Os portugueses votantes preferem, ainda que inconscientemente, a extorsão fiscal, a incompetência e a ineficiência de um Estado que ameaça taxar tudo o que mexe, do que pensar que o seu vizinho pode prosperar trabalhando no seu próprio negócio. E preferem ter um governo socialista a tomar conta deles. Antes isso do que serem abandonados à sua sorte e sofrerem a provação de cuidar dos seus próprios interesses. Sendo certo que é impossível um país prosperar se são penalizados aqueles que mais se esforçam, há ainda, felizmente, muitos portugueses que não se resignam e continuam, dia após dias, a trabalhar para viver dignamente e de forma livre. Só que, a avaliar pelas elevadas taxas de abstenção, muitos deles decidem não ir votar porque perderam a esperança de, com o seu voto, mudar o rumo do país. Nesta senda diabolizante dos que querem prosperar com o seu esforço, os médicos, os professores, os advogados e os que escolhem trabalhar por sua conta ou na iniciativa privada são vistos como egoístas, que só pensam no próprio interesse, só querem ganhar dinheiro e não são sensíveis ao bem comum, pelo que, na perspectiva do Governo e da esquerda, essa pouca-vergonha tem de acabar, devendo toda essa gente ser obrigada a trabalhar compulsivamente no sector público, ganhando menos, mas prestando, gratuitamente, um serviço à colectividade. Curiosamente, os beneficiários do RSI não podem ser obrigados a trabalhar para retribuir o que recebem dos contribuintes, porque tal seria sempre considerado uma forma de exploração. Sim, pode parecer democrático.
Em cerca de oito anos que já leva este Governo e apesar do anúncio recorrente de reformas e medidas, o certo é que, segundo um estudo promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (disponível aqui), em 2022, 37,2% dos portugueses não tinham capacidade para pagar uma semana de férias por ano fora de casa; 29,9% não tinham capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada; 17,5% declararam não ter capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida. Já para não falar da pobreza alimentar e da falta de acesso a cuidados básicos de saúde que também resultam evidentes neste estudo. Se olharmos para o que se passou nos últimos anos, orçamento após orçamento, vemos que não se promoveu o investimento, não se criou emprego qualificado, não incentivou as empresas, não se promoveu inovação e não se reduziu despesa. Os vários orçamentos que tivemos foram sempre, tendencialmente, para proteger instalados: empresas que trabalham para o Estado, sindicalistas, funcionários públicos, adiando a resolução dos problemas estruturais do país, aumentando de forma despudorada a despesa, o que se vem conseguindo esconder com os fundos que vamos recebendo da União Europeia.
Portugal continua, portanto, a caminhar apressadamente para ser o país mais pobre da União Europeia, apesar dos milhares de milhões de euros que todos os anos recebemos em fundos (e desbaratamos) e apesar dos milhares de milhões de euros que pagamos em impostos, taxas, taxinhas, emolumentos, portagens e contribuições de toda a sorte, para serviços públicos mínimos. Vivemos mergulhados numa burocracia sem fim, num gradeamento inexpugnável que exige, para qualquer início de actividade ou pedido de licenciamento pareceres, vistos de organismos e comissões, autorizações e registos, que empenam, demoram, chateiam e que muitas vezes servem apenas para satisfazer os poderes instituídos ou pior, para justificar organismos sem utilidade nenhuma que, de outra forma, não teriam o que fazer. À conta disto, a percepção que se tem é que o Governo foi colocando camaradas de confiança em todos os sectores da administração pública e da sociedade que, directa ou indirectamente, vão condicionando o nosso devir colectivo. Sim, pode parecer democrático.
Entretanto, a pandemia, a guerra e a conjuntura internacional, aliadas ao génio político insofismável de António Costa, possibilitaram que a cultura do medo se instalasse e, preferindo os portugueses a segurança à liberdade, não têm intrepidez para trocar o certo pelo incerto. Aliás, a pandemia serviu como experiência social excelente para se ver que, sem grande sobressalto, se consegue rapidamente instaurar um regime ditatorial e autoritário. Costa e o seu PS souberam bem aproveitar o medo da insegurança, as emoções e os sentimentos de comiseração, sobretudo nos novos activistas stay-homers, prometendo segurança, assistencialismo e esmolas para que o socialismo se perpetue no poder.
Com isto, a nossa democracia vai-se degradando, caminhando consistentemente para o unanimismo porque a forma como se foi governando nos últimos anos, criando dependências em todos os sectores da sociedade, tornou impossível a mudança de ciclo. Daí o meu parágrafo inicial. Isto parece democrático. Contudo, muitos portugueses não vislumbram, na prática, escolha. E a ausência de escolha não deriva de falta de alternativas credíveis (que há e serão sempre melhores que o actual estado de coisas): a ausência de escolha deriva da impossibilidade de, numa malha apertada de dependências e atavismos, desatar as amarras de quem não as consegue soltar porque não tem mãos livres para desatar.
Artigo publicado pelo Observador em 2023/11/03, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.