Beatriz Soares Carneiro .
Sempre que se aproximam eleições europeias, uma das principais discussões, que entusiasma toda a gente, mesmo aqueles que estão mais longe dos temas e políticas europeias, é o dos nomes que irão ocupar os chamados top jobs nos próximos 5 anos. Será que Von der Leyen vai mesmo renovar o mandato? E se não for ela, quem pode ser? E quem irá substituir Charles Michel? António Costa tem mesmo hipóteses? Poderá afinal ser Mário Draghi? E como será a reconfiguração à direita e que papel está reservado à Primeira Ministra Italiana, Giorgia Meloni?
São discussões sem dúvida interessantes e desafiantes, sobretudo numa perspectiva imediata de equilíbrio de poderes, mas que, na fotografia maior, não são assim tão relevantes. Ser Von der Leyen ou outro nome, que virá provavelmente da área do PPE, não faz uma enorme diferença, para além do circunstancialismo, da personalidade e da forma de exercício do poder que é, como sabemos, algo muito pessoal. Se Von der Leyen é centralizadora (como dizem) isso deve-se mais à sua personalidade do que a qualquer filiação partidária ou maioria de apoio.
Mais impacto do que os nomes, terão, sem dúvida, os equilíbrios de poder que nascerão depois de 9 de Maio. Não me lembro de ter assistido a nenhuma eleição europeia com um tão elevado grau de incerteza quanto ao seu desfecho. Se parece certo que o espaço à direita do PPE está em franca expansão, é menos evidente o que irão os partidos aí situados fazer com o peso parlamentar que podem conquistar. Que irá haver uma reconfiguração desse espaço é evidente. Mas quais os contornos dessa reconfiguração ninguém tem a certeza e a “chave” do enigma reside em Meloni que tem dois caminhos à sua frente: entrar no PPE, pela mão de Von der Leyen, assumindo a sua total “normalização” e criando uma ala direita, não federalista dentro do PPE (o que, inclusivamente já existiu no passado); ou assumir a liderança de um novo grande grupo europeu que pode juntar o Rassemblement National Francês, o Fidesz da Hungria, o PIS da Polónia, o NVA da Bélgica, o Vox Espanhol, o Partido Democrático Cívico Checo, o AUR da Roménia, o PVV de Wilders e até o nacional Chega. Se a opção for esta última, pode nascer o segundo maior grupo político no Parlamento Europeu, o que tornará muito difícil ignorá-lo ou contorná-lo.
Porém, à direita do PPE, os partidos não são todos iguais, não têm todos os mesmos objetivos e não defendem todos o mesmo. Têm, obviamente, pontos em comum e um deles é uma ideia de Europa de Nações, por oposição a uma tendência mais federal, com uma preocupação com a manutenção da soberania no Estado-Nação e menos transferência de poder para Bruxelas. Outro ponto que une estes partidos é uma rejeição dos modelos até aqui aplicados no que toca à gestão das migrações. Querem mais controlo de fronteiras e menos imigração. Mas na economia, por exemplo, será difícil encontrar pontos de contacto entre o super frugal Wilders e a estatista Le Pen. Também por isto, o que poderá nascer à direita do PPE é um puzzle complexo e poderá ser uma caixinha de surpresas.
Esta reconfiguração é tão mais interessante quanto, no fim do último mandato, assistimos, em mais do que uma ocasião, ao PPE a tentar travar propostas da Comissão presidida por Von der Leyen com o apoio da sua direita, o que à época se revelou ser uma maioria curta. No próximo mandato pode vir a existir uma maioria formada desde o PPE até ao extremo da direita parlamentar. Não é provável, no entanto, que haja uma coligação formal do PPE com a sua direita que deixe de fora os parceiros habituais. Será mais provável existir uma maioria tradicional formada entre PPE, Socialistas e Liberais para a generalidade das políticas e, em alguns pontos muitos concretos, o PPE aliar-se à sua direita. Será um Parlamento Europeu provavelmente mais imprevisível, de geometria variável, e em que as maiorias de aprovação poderão ir mudando consoante os temas. O PPE continuará a ser a figura central do jogo, mas terá espaço para usar a sua lateral direita e a sua lateral esquerda, conforme o seu interesse em cada momento.
Mas se este intrincado xadrez é muito interessante de uma perspectiva analítica, há um pano de fundo, uma camada mais profunda, que não é tão directamente afectada por estas novas maiorias e novos equilíbrios. São as grandes linhas da política europeia, mais estáveis e de continuação, como aquelas que foram definidas pelo Relatório de Enrico Letta e como as que virão a ser apresentadas no Relatório de Mario Draghi. Também a Agenda Estratégica, que os Chefes de Estado e Governo irão aprovar no Conselho Europeu de final de Junho, é já uma indicação muito real do que o Conselho espera da futura Comissão e que prioridades gostaria de ver plasmadas nas linhas mestras do seu Programa.
Há uma famosa analogia da União Europeia a uma bicicleta que nunca pode parar, sob pena de cair. O processo legislativo e de decisão é isso mesmo. Uma bola a rolar, permanentemente, desde que lhe é dado o pontapé inicial. E por isso raramente algo nasce do nada. Tudo tem uma origem, uma semente que foi plantada anos antes e que vai germinando até se tornar uma planta da qual já será difícil livrarmo-nos se, por fim, concluirmos que não era aquilo que queríamos.
Por isso é tão importante estar presente no início dos debates e dos procedimentos. Chegar cedo não é uma vantagem. Chegar cedo é uma necessidade. E neste momento há inúmeras bolas a rolar. Desde as mais transversais, como os Relatórios Letta e Draghi, mas também as mais concretas, como a Recomendação relativa à meta de redução de emissões até 2040, a Comunicação sobre a gestão industrial do carbono, a Estratégia Industrial de Defesa Europeia, o White Paper em matéria de infraestruturas digitais, a Proposta para a introdução do euro digital ou a Comunicação sobre reformas e revisões das políticas antes do alargamento.
Todas as bolas já foram lançadas, estão em fases diferentes do seu processo, mas terão que continuar a ser chutadas pelos próximos protagonistas. Claro que estes podem sempre mudar a direcção da bola ou pará-la. Não seria a primeira vez que isso aconteceria e, para quem já cá anda há uns anos, vem logo à memória a proposta para Sistema Europeu de Garantia de Depósitos (EDIS, na sigla inglesa), o terceiro pilar da União Bancária, que foi anunciado com pompa e circunstância em 2015 e que até hoje não passou de uma intenção.
Porém, não é normal que uma eleição ou uma alteração de protagonistas tenha um impacto imediato no rumo e nas políticas, porque estas foram já definidas, num momento anterior, e tradicionalmente há continuidade nas grandes prioridades, porque a política europeia não se fez de antagonismo, mas de negociação e compromisso alargado entre famílias políticas muito diferentes, o que assegurava que o processo fosse o fruto de um amplo consenso social e político.
Isto dito, há um factor que muitas vezes é ignorado e com o qual muitos não contam nas suas análises: a democracia e o poder que reside no povo, que elege os seus representantes, tanto nos governos e Parlamentos nacionais como no Parlamento Europeu. Se há 5 anos atrás o Green Deal era a prioridade absoluta e parecia lançado para o continuar a ser nos anos seguintes, a verdade é que os Agricultores saíram à rua num movimento que começou na Holanda mas se estendeu a boa parte da União, dizendo que os objectivos verdes impostos ao sector eram impossíveis de cumprir e que era preciso conciliar a transição verde com um sector agrícola forte e produtivo. Por causa deles, os partidos que agora concorrem às eleições afinaram os discursos, falam directamente para os agricultores e a transição verde tornou-se mais uma ferramenta para garantir segurança energética e liderança industrial do que um objectivo em si mesmo.
Isto significa, que por mais perfeito que o plano pareça no papel, por mais que a política europeia se faça de grandes consensos que tentam garantir a continuidade das políticas, por mais que já haja inúmeras bolas a rolar, por mais que os Sábios sejam chamados a elaborar Relatórios com propostas para o futuro, no fim do dia, a escolha reside sempre nos cidadãos, nas empresas, na sociedade civil. Eles (nós) têm o poder do voto e a força da sua voz. #use your vote
Artigo publicado pelo Observador em 2024/06/04, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.