José Meireles Graça .
De há uns anos, o agregado familiar inventou um esquema para uma semana de férias extra, fora de época: ir de low-cost para um destino qualquer, alugar um carro e daí, num raio variável consoante a qualidade das vias de comunicação, visitar dois ou três destinos.
Desta vez foi a Toscânia (sim, eu sei que há quem defenda que se deve dizer Toscana, que para mim é um tipo de salsicha), destino inicial Pisa.
Um ponto prévio: há voos do Porto para Pisa. E como as companhias cada vez mais recorrem a voos directos para destinos onde dantes não se pensava chegar de avião de uma só vez, talvez a ideia de fazer um novo aeroporto em Lisboa se venha a revelar uma tolice porque este não vai ser hub de coisa nenhuma. De resto, o avassalador turismo actual começa a assustar as edilidades, e as populações, de sítios com demasiado sucesso: não vale a pena ir a lugar algum que o excesso de turistas descaracterize e transforme numa feira, e pergunto[1]me se Lisboa pode continuar a receber números crescentes de visitantes como se o céu fosse o limite. Sou velho, e do Restelo, já se vê. Esta mudança de costumes é consequência do capitalismo, que pôs a viajar quem dantes não o podia fazer. Porque o mesmo resultado com companhias de bandeira só seria possível, e ainda assim apenas numa pequena parte, com intervenção de governos, e portanto dinheiro dos contribuintes.
O périplo previsto incluía S. Gimignano (três noites), Arezzo, Siena, e finalmente a capital da região, Florença (quatro noites). Nesta última cidade já havia estado anteriormente, por duas vezes com intervalo de anos.
Ficaram de fora inúmeras outras cidades que merecem visita. E de resto para conhecer minuciosamente bem só Florença, e o seu gigantesco recheio de museus, palácios e bairros com interesse histórico, seria talvez necessário um mês, a levantar cedo.
Do panegírico à região, a sua prodigiosa riqueza artística em inúmeras cidades e aldeias, a beleza do campo e a impressionante extensão dedicada à produção do chianti, a gastronomia, tão consolidada e excelente que até mesmo nas zonas turísticas é possível encontrar restaurantes sem tradições abastardadas nem cozinha internacional, não vou curar. A Toscânia e a sua história preenchem bibliotecas inteiras, que continuam a crescer; e quem tiver um mínimo de curiosidade sobre o percurso da Arte, na qual o Renascimento é porventura o marco mais ilustre, deve, se tiver meios, ir passear para aqueles lados, coisa que aliás suspeito a maioria dos artistas contemporâneos nunca fez. Não porque possam ganhar lugar a copiar modelos, mas porque podem aprender com o prodígio da técnica e a maestria da expressão – na estatuária, na pintura e na arquitectura.
Ficam assim, da minha lavra, notas avulsas das pequenas coisas:
Estradas:
As autoestradas são poucas e piores que as portuguesas, provavelmente por serem mais antigas, e muitas cidades importantes não são servidas. Aparentemente, na extensa galeria de governantes italianos não figurou nunca um senhor engenheiro, essa é que é essa. O limite de velocidade é, salvo erro, 130 km/h, mas a densidade do trânsito tal que circular comodamente faz-se a velocidades inferiores. As estradas são estreitas, normalmente com bom piso, mas com traçados de curva e contracurva demenciais. A isto acresce a constante micro-regulação da velocidade (90, 60, 40 km/h, até menos à menor localidade), o que faz com que seja impossível manter uma marcha confortável. A quantidade de rotundas é impressionante, algumas não tendo outra saída senão o prolongamento da estrada em que se vem. Suponho que as razões invocadas devam ser a segurança do acesso e a quebra de velocidade em rectas, que praticamente não existem. Já eu acho que a explicação consiste na conjugação de fundos europeus, funcionários públicos dos departamentos rodoviários, e edis. A mesma de cá, com a diferença de não ter visto uma única ornada com “esculturas”, seja porque esse requinte não ocorreu aos troca-tintas locais, seja porque os Italianos não se distinguem pelo mau-gosto.
Por toda a parte há uma quantidade absolutamente prodigiosa de ciprestes. Essa árvore, por cá, é considerada lúgubre, razão pela qual aparece muito em cemitérios. Ignoro a razão desta diferença, mas não reclamo: desde que não sejam choupos daquela variedade que na Primavera larga nuvens de cotão, de árvores quero é muitas.
Há algumas vias-rápidas, estradas de quatro faixas sem bermas. Perigosas por causa dessa omissão, mas não tanto quanto as da nossa casa, com as suas quatro faixas que passam a três, depois a duas, novamente a quatro antes de a coisa mudar, com acessos de tipologias diferentes aumentando as situações de imprevisibilidade. Os engenheiros que entre nós projectam estas ratoeiras (e que são os mesmos que jamais encontraram o segredo de as tampas de saneamento estarem à face do piso) devem fazer a barba de manhã (ou pintar os lábios se forem engenheiras) não vendo no espelho as trombas dos ineptos que efectivamente são.
Instalações sanitárias:
São raros os restaurantes, bares ou cafés que têm quartos-de-banho separados para homens e mulheres, e quando sejam para homens nem sempre têm mictórios. E não é por causa dos zero vírgula qualquer coisa por cento que vivem com a cabeça de um corpo alojado no sexo do outro; é porque sempre assim foi e a legislação não obriga a que seja de outra maneira. Mon coeur balance: O Estado a meter o nariz nos arranjos de estabelecimentos comerciais que existem com tal profusão que a concorrência é por definição muito grande é coisa que fere a minha costela liberal; mas a higiene nem sempre é das melhores e acontece (aconteceu-me mais do que uma vez) ter de esperar, as pernas cruzadas no esforço de conter o Niagara porque a única casinha não estava disponível. De modo que vou ali fazer um exame de consciência às minhas convicções políticas e já volto.
Curiosidade:
São inúmeras as bombas de gasolina que oferecem self-service mas também o disponibilizado pelo pessoal da casa, neste caso a troco de um preço ligeiramente mais caro, sendo o pagamento efectuado directamente ao funcionário que se ocupou dessa operação. Suponho que tal combinação também fosse possível por aqui, mas talvez sem grande sucesso: o Português médio tende a achar sempre que o moderno é melhor e há lá coisa mais moderna que o self-service?
Selfies:
Sempre os turistas se fizeram fotografar nos lugares visitados. Para recordação dos próprios, da família e para mostrar aos amigos. Que isso vá parar às redes sociais, que são os antigos cafés e aldeias, está na ordem natural das coisas, e que agora não seja precisa a intervenção de um terceiro para dar o clique na máquina é uma comodidade. Há porém exageros: nos museus, face às peças expostas mais famosas, há uma floresta de pessoas e de cliques, que não deixam ver nada com um módico de sossego. As mesmas pessoas sentam-se logo a seguir em bancos, ali postos para facilitar a contemplação, examinando furiosamente as fotografias. Extraordinário: mais valia, talvez, terem ficado em casa a compulsar um bom livro ilustrado, dos quais há milhentos. Porque as fotografias são invariavelmente melhores e porque têm um texto que explica o que raio é que estiveram a ver.
Pão:
Em 7 dias e 5 cidades diferentes só uma vez se repetiu um restaurante, o que dá 13. E em todos eles, com excepção de um, o pão era branco, mal cozido e insosso (na excepção havia oferta extra de um pão extraordinariamente salgado, aliás agradável). A brancura deve ter origem no tempo em que os pobres comiam pães de mistura, mais escuros, deixando a memória de que fino, fino, é o pão branco; e a ausência do sal é – nem preciso perguntar – o fascismo sanitário em acção. Que no país que inventou a doutrina, cujo prócere mais relevante acabou pendurado de cabeça para baixo numa viga metálica em Milão, aquela tenha evoluído para versões caricaturais do Tudo pela Nação, Nada Contra a Nação (esta entendida como a comunidade dos escravos compulsivos da vida sã) é irónico. E não seria mau se a originalidade ficasse confinada àquela bota latina. Mas não: entre nós o fascismo higiénico tem advogados que vão da Direita à Esquerda e pela porta do “combate” ao sal, ao fumo, às gorduras, ao sedentarismo, passam em tropel os controleiros da vida do próximo a golpes de Directivas.
Imigrantes:
Vi, surpreendentemente, muito menos do que o que estava à espera. Italianos e italianas a servir encontrei por toda a parte, geralmente todos simpaticíssimos (e elas, frequentemente, bonitas, que tenho por verdade axiológica que as Italianas são as mulheres mais encantadoras do mundo). Muçulmanas, isto é, mulheres cobertas de farrapada púdica seguindo o barbudo que pastoreia o rebanho familiar, só em dois em três casos. O palavreado que tem curso entre nós, importado por sua vez do bem-pensismo pateta que, com origem nas universidades americanas, se tornou num dos mantras da esquerda europeia e do dedo em riste moralista das nossas Marianas, Daniéis e, que Deus lhes perdoe que eu estou sem vagar, não poucos socialistas, é que a discriminação dos imigrantes ofende a equivalência das civilizações e o direito à diferença.
Ofenderia sim se isto fosse uma questão estética e de liberdade: cada um veste o que quer, come o que quer, dorme com quem quer e vai para onde quer ou pode. Mas não é uma questão estética: aquelas mulheres vestem assim porque na sua organização social de origem o seu estatuto social, e legal, é de inferioridade em relação ao marido, ao pai e ao irmão, em graus diversos consoante o peso que têm os textos religiosos em cada um dos países muçulmanos. Tolerar, em nome do relativismo cultural, manifestações de evidente afronta aos valores do Ocidente que incontáveis gerações (incluindo, no que toca a mulheres, inúmeras pioneiras) conquistaram é uma atitude potencialmente suicidária: em nome da nossa liberdade continuam as suas práticas, em nome das suas crenças proibirão as nossas logo que para isso sintam ter poder, o que não é impossível depois de atingido um certo limiar numérico. Que algumas muçulmanas reclamem para si, em nome da identidade, o direito de se comportarem da forma tradicional não vale mais do que o que reclamaram alguns escravos que nutriam pelos donos gratidão. E como não faltam corifeus da esquerda que não ignoram nada disto, nem são estúpidos, o que podemos concluir do seu patrocínio é que contam com a destruição por desistência de uma certa ordem social para no seu lugar porem outra (a deles) que os eleitorados sufragarão no dia em que já não souberem onde estão com a cabeça ou não tiverem outro remédio.
Burocracia e máfia:
Tendemos a achar que somos os campeões da burocracia, e que essa é aliás uma das marcas distintivas do nosso Estado intrometido – red tape lhe chamam os anglo-saxónicos. Somos. Mas em Itália a coisa não é só com o Estado. A simples operação de alugar um carro pode com facilidade transformar-se num pesadelo: o preço final não é o que já havia sido pago antecipadamente, a pressão para o upgrade do modelo escolhido é enorme e hábil, aparece a necessidade de um depósito de garantia que não havia sido mencionado senão num canto ignoto dos anúncios e a mais elementar prudência obriga a fotografar integralmente o veículo porque as amassadelas e arranhões podem ser, no regresso, imputados ao inocente. Houve mais detalhes escabrosos, incluindo um cómico: Foi-me pedido um extra de quase 200 Euros para o GPS, que todavia era standard no carro já escolhido, ou seja, se não o tivesse pedido e pago tê-lo-ia na mesma. O moço era extremamente simpático, ficava bem no cast de um filme sobre a Cosa Nostra. E ao que me dizem corridas de táxi é melhor negociar primeiro, assim como em muitos estabelecimentos, até mesmo para artigos de luxo, regatear é tão vulgar como no Grande Bazar de Istambul.
Pecadilhos. A Itália é um grande país e berço e cadinho de muito do melhor que o Ocidente já produziu.
Artigo publicado pelo Observador em 2024/06/14, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.