Teresa Nogueira Pinto e José Bento da Silva .
É possível que estejamos a assistir não apenas a uma época de mudanças políticas, mas a uma mudança do paradigma político. Uma mudança desenhada num mapa que liga, umas vezes com linhas claras outras com traços quase impercetíveis, a Hungria aos Estados Unidos, a Argentina a Itália, a França ao Canadá, a Alemanha ao Chile. É feita de discursos e momentos-chave. Discursos como o de Órban em Băile Tuşnad, no verão de 2014, ou o de Giorgia Meloni na Praça San Giovanni, em 2019; e momentos-chave, como o Brexit em 2016, as vitórias de Trump em 2016 e 2024, ou a eleição de Bukele em 2019 e de Milei em 2023. Esta mudança do paradigma político à direita parece estar para ficar. Em 2025 seguese a muito provável ascensão meteórica da AfD na Alemanha, a quase certa vitória de José António Kast nas presidenciais chilenas, ou a reconfiguração, já em curso, da direita britânica por via do crescimento do ‘Reform UK’ de Nigel Farage.
Tecida nas malhas das sucessivas crises políticas e económicas que persistem desde 2008- 2009, bem como na perda de um norte moral e no abandono do senso comum, a mudança de paradigma à direita tem como pano de fundo a perversão (ou hiperbolização) do liberalismo: o pesadíssimo legado de Angela Merkel, elevada a líder do mundo livre, cosmopolita e ‘verde’ pelo “anti-Trumpismo” primário; a distopia “woke” que Trudeau quis instituir no Canadá; o elitismo tecnocrata de Macron e de Bruxelas; ou o risco de falência moral de uma Europa que sacrifica a decência no altar da correção política, e anunciada na triste história dos gangues de violadores no Reino Unido. Esta perversão foi sobrevivendo enquanto a economia permitia que as elites alimentassem (que é como quem diz financiassem) a fantasia de um homem e de um mundo novo. Um homem inteiramente desenraizado, liberto de Deus, da moral, da sua “masculinidade tóxica”, e até da biologia. E um mundo onde já não existem fronteiras ou identidades, e em que nos diluímos nesse caldo fraterno que é a “cidadania global”. Mundo que se foi tentando construir por via de políticas migratórias que servem bem uma parte da economia, mas que a prazo esbarram com aquilo que o liberalismo deixou de ser capaz de resolver: o conflito de valores.
Esta mudança de paradigma político à direita acontece graças a um conjunto de líderes que foram capazes de incorporar a resistência ao status quo acima descrito. É o caso de Giorgia Meloni que é hoje, segundo o insuspeito Politico, a pessoa mais influente da Europa. Meloni, exímia construtora de equilíbrios, não hesitou em desafiar o ar de um tempo já gasto, obrigando as guardiãs do feminismo progressista a esclarecer que mulheres conservadoras não servem para romper “tectos de vidro”; é também o caso de Milei, que a douta Foreign Policy descrevia, em 2023, como um “wannabe” fascista apostado em destruir a democracia a partir de dentro. A democracia resistiu, e o que os números nos dizem é que o liberalismo (aquele, entenda-se) afinal funciona, e fazia muita falta à Argentina.
Mas se é inegável que foram os resistentes que abriram caminho para a mudança, não é ainda claro para onde essa mudança nos levará. Essa é uma questão muito mais interessante, e importante, do que a litania de lamentações sobre o populismo, encabeçada por académicos e comentadores mais preocupados em sinalizar virtude do que em compreender fenómenos. O que une e o que separa os líderes que incorporam esta mudança?
O que une e separa Meloni, Orban, Trump, Polievre, Milei, Abascal, Le Pen, Farage, Wilders, Bukele? Entre as virtudes comuns a todos está a coragem. Coragem para romper com o pensamento hegemónico (mas não necessariamente maioritário), visível na forma como Meloni reivindica as raízes da identidade italiana e europeia; na resistência de Órban aos ditames, às chantagens, às multas e às ameaças de cancelamento de fundos que Bruxelas imagina podem um dia trazer a Hungria de volta ao redil da verdade que Bruxelas impõe; na determinação de Milei em fazer o que tem de ser feito na Argentina, recuperando para a política o realismo económico; na bravura física de Trump, que depois de uma tentativa de assassinato se levanta e grita “fight, fight, fight”.
Contudo, sendo necessária, a coragem não é suficiente. Para que não caíamos na tentação do absurdo, é preciso senso comum. O senso comum, ou o bom senso, permite-nos desafiar os dogmas do “wokismo”, dizendo que as raparigas não devem ser obrigadas a competir com os rapazes no desporto, que a imigração descontrolada implode a coesão social, ou que a cor e o sexo não são certidões de culpa ou inocência. Mas é também o que nos impede de reduzir a resistência a números de circo ou, pior, de cair na tentação de um “wokismo” de sinal contrário, que aceita a censura desde que os censores sejamos nós. A luta pela vitória do bom senso em política é outro factor a unir alguns dos vários líderes e movimentos que povoam a direita.
Mas as mudanças de paradigma político que se estão a desenhar indicam que estamos a passar para uma nova fase, em que será preciso reconstruir e construir. E é na forma como as várias direitas, que até aqui partilhavam a virtude da coragem e o apreço pelo bom senso, imaginam o futuro, que as diferenças entre líderes e movimentos à direita se tornam visíveis (e bastas vezes confusas…).
Para imaginar um novo futuro à direita são precisas convicções: a coragem e o bom senso não são já suficientes. Estar convicto, i.e., estar convencido de uma coisa sobre a qual apenas temos evidências morais, é o que nos permite escapar à tentação do ressentimento e ir para além da reação e da política de circunstância. Dito de outra forma: aquilo que uniu a direita até aqui não é suficiente para unir a direita na construção de um futuro imaginado relativamente comum.
Só as convicções nos permitem fazer política pensando mais no país que queremos deixar aos nossos netos, do que nos resultados do próximo ciclo eleitoral. É preciso, por isso, rejeitar a tentação de uma política que é só forma, mas não oferece conteúdo: o populismo da política espetáculo, desenhada ao ritmo do algoritmo, assente na ilusão de que nos podemos livrar das elites. Porque das elites, como dos impostos e da morte, dificilmente nos livraremos, é necessário, como defende Patrick Deneen, criar uma “contra-elite”, que substitua os “especialistas sem espírito” que atualmente nos governam, que desmantele as burocracias, reduza o poder tentacular do Estado, enfrente a deriva activista do poder judicial e que, ao mesmo tempo, recupere os conceitos de virtude e de “bem comum”.
Finalmente, é preciso um compromisso com a liberdade. Compromisso que implica denunciar o niilismo progressista não de forma seletiva ou em nome de “percepções”, mas porque sabemos que obrigar-nos a fingir que homens são mulheres ou que animais são pessoas é tão distópico quanto obrigar-nos a aceitar que dois mais dois são cinco. Compromisso que obriga a renunciar ao socialismo em todas as suas formas, e não como mera táctica discursiva ou estratégia circunstancial. E a rejeitar, assumindo as consequências, todas as formas de autoritarismo que corroem a liberdade das pessoas, das famílias ou das nações, incluindo fórmulas como o globalismo, o multiculturalismo, um “super Estado” europeu; ou agendas não sufragadas e claramente perniciosas para a economia e para a liberdade, como as “políticas net-zero”, as “cidades dos 15 minutos”, entre tantas outras panaceias que contrariam o senso comum, comprometem a liberdade e acarretam custos económicos inimagináveis para as gerações futuras.
Mas as novas direitas e as novas lideranças que ocupam este espaço político não são todas iguais. Nem todos percebem a relevância das convicções, e nem todos terão as convicções, a virtude e a imaginação política que os tempos que se avizinham requerem. Interessa pouco que Trump não seja Churchill. Interessa muito mais compreender porque é que Le Pen não é Meloni ou porque é que Bukele não é Milei. E sendo verdade que foi muito aquilo que uniu estas várias direitas até agora, é possível que daqui para a frente seja muito mais aquilo que as separa.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/01/17, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.