Ricardo Dias de Sousa .
No dia da investidura, Donald Trump revogou 78 ordens executivas do seu predecessor e assinou uma vintena de ordens novas. O anterior record pertencia a Biden com nove, seis a revogar ordens executivas de Trump e três de criação própria. As ordens executivas são uma forma expedita de legislar. Só podem ser revogadas por outra ordem executiva, pelo Congresso, ou por um tribunal. A prática foi comum durante a primeira metade do século XX. Entre as presidências de Theodore Roosevelt e Harry Truman, todos os presidentes assinaram mais de 100 por ano, com mais de 200 durante a Grande Depressão e mais de 300 durante a Segunda Guerra Mundial. Dependendo de quem o diga, Trump recupera para já uma forma de fazer política mais ditatorial ou mais ajustada à gravidade do momento.
Mais consensual entre admiradores e detractores é o reconhecimento de que a primeira eleição de Donald Trump foi também a primeira em que as redes sociais foram um factor decisivo (com um papel semelhante ao da televisão na eleição de Kennedy). Se dúvidas existissem, oito anos mais tarde, Trump regressou mais forte que nunca, as redes sociais vieram para ficar e os americanos não só vão conhecer em primeira mão através do X muitas das medidas promulgadas por Trump, como as irão ler na linguagem que Trump considere oportuna. Nessa linguagem salta à vista a falta de pudor com que Trump se expressa, em particular quando se refere ao seu predecessor. Por exemplo, na ordem executiva que anula a obrigatoriedade de utilizar palhinhas de papel, Trump chamou “ridícula” à lei que Biden promulgou para o efeito e, noutra mensagem, “terrível” discriminação aos cristãos perpetrada por várias agências governamentais ao abrigo das políticas do seu antecessor. O próprio nome de Biden é habitualmente acompanhado do adjetivo “retorcido” (em inglês crooked) nos tweets, perdão xis, do actual Presidente. Nos EUA não era inusual alguns candidatos usarem adjectivos como “ridículo”, “terrível” ou coisas piores para descrever as políticas ou as ideias dos seus adversários. Isso fazia parte do show. Mas, chegados à presidência do país, existiu sempre uma espécie de continuidade no regime que inibia um presidente de desclassificar as decisões do seu antecessor, mesmo quando as mandasse para o caixote do lixo e as substituísse por outras diametralmente opostas. Isso também acabou.
Muitos acreditam que isto só acontece porque Donald Trump é grosseiro. E grosseiro será, mas lembro-me de pensar o mesmo da primeira vez que ouvi o Bolsonaro falar (ainda que Lula também não seja exatamente um Demóstenes). E que dizer dos constantes insultos de Milei aos seus adversários? Não será que, por algum motivo, as pessoas agora preferem votar políticos grosseiros, um fenómeno a que a oposição bem-falante chama “um aumento do populismo”? Só que “populismo” na realidade significa simplesmente que o outro é mais popular, pelo que a questão que se deveriam estar a perguntar a si mesmos é o porquê de já não serem tão populares. E a resposta, no meu humilde entender, é que existe uma dissonância cada vez maior entre a linguagem empregue pelas elites para descrever a sociedade e a realidade que os votantes observam no s eu dia-a-dia, algo que, por certo, também aconteceu noutras época convulsas da História.
Existe hipérbole, demagogia, alarmismo e sensacionalismo nos discursos de Donald Trump? Claro que sim, no entanto, aos ouvidos de muitos trabalhadores das classes médias e baixas, essa hipérbole, essa demagogia, esse alarmismo e esse sensacionalismo descrevem melhor aquilo que os eleitores vivem no seu dia a dia que a minoração, a sobriedade, a mitigação e a normalização dos discursos dos políticos do status quo centrista. Os “incumbentes” preferem pensar que este é um motivo adicional para exercer o seu controlo sobre uma população que, cada vez mais, põe em causa a capacidade dos seus líderes de governar. Mas o descontentamento é evidente, em particular nas novas gerações das classes médias baixas que já assumiram que vão viver pior do que os seus pais.
A partir da Crise Financeira Global de 2008, os governos e os bancos centrais encetaram uma série de medidas com o objetivo de manter o sistema monetário e financeiro em funcionamento. Para tentar evitar uma contracção económica inevitável (que era afinal, o tempo necessário para os investidores descobrirem a estrutura de produção económica necessária e eficiente para sair da crise) os governos, através dos bancos centrais, injectaram a liquidez necessária para manter à tona de água grande parte da estrutura de produção existente, na esperança que o tempo assim ganho permitisse aos empresários fazer as correcções necessárias ao crescimento económico sem dor. O problema é que a forma como isso se pode fazer tem um custo e este custo não é neutral, quer dizer, não é distribuído homogeneamente pela população.
A produção de liquidez para impedir a insolvência provocou em primeiro lugar, uma nova inflação do preço dos bens de capital. Isso foi visível na apreciação quase contínua das bolsas de valores desde 2008. Neste cenário, aqueles indivíduos que possuem bens de capital viram a sua riqueza crescer substancialmente mais que a daqueles que vivem exclusivamente dos seus salários.
Adicionalmente, porque a forma de gerar essa liquidez, quer dizer, emissão de dinheiro por parte dos bancos centrais é feita contra a apresentação de garantias de qualidade, a procura de dívida pública por parte dos bancos aumentou, esta apreciou-se e os estados ocidentais passaram a dispor de dinheiro muito mais barato e a financiar um nível de gasto público corrente manifestamente insustentável no longo prazo. Neste caso, aqueles indivíduos que orbitavam mais perto da esfera pública, ou que dispunham de poupanças para financiar o Estado, observaram como a sua riqueza, rendimento, ou ambos, cresceu de forma relativamente maior que a da generalidade da população. Para agravar a situação, este dinheiro público foi utilizado para adicionar novos encargos correntes à larga lista de despesas públicas, agora na forma de promoção de políticas sociais de inclusão, de igualdade, de género ou mesmo ambientais, que teriam sido do agrado do eleitorado se fossem grátis, mas que, na realidade em pouco ou nada melhoraram o nível de vida da população que está agora a pagar por elas, tanto através da inflação como do aumento da carga fiscal. A isto temos que juntar o efeito do aumento do custo da produção das empresas derivado do brutal aumento da regulação necessária para fiscalizar e implementar muitas destas políticas. Mesmo admitindo que essa regulação aumenta a qualidade daquilo que se produz, uma afirmação bastante discutível, isso não deixa de significar que dificulta a prestação de serviços mais baratos àquela parte da população que não pode pagar mais por eles.
A estes dois efeitos juntou-se um terceiro muito curioso. A descida de taxas de juro para níveis depressivamente e artificialmente baixos permitiu reduzir de tal forma o custo do capital ao ponto de virtualmente qualquer projecto, mesmo um que só dê lucros no mais além, passasse por arte de magia financeira a ser viável. Foi neste cenário que as elites económicas que, afinal de contas, partilham os mesmos valores das elites políticas, começaram a investir em políticas ESG, que nalguns sectores, como a Energia ou o Transporte, significaram avultados investimentos para redesenhar a roda (nalguns casos fazendo-a quadrada), com a esperança de lucros no paraíso terrestre que estas políticas promoveriam num futuro muito distante. Tão distante e incerto que só taxas de juro negativas poderiam justificar no presente.
Quando a festa já começava a dar sinais de fadiga, o inesperado permitiu empurrar a conta para o futuro. Um pânico global por causa de um vírus respiratório, não muito diferente dos da gripe que, nuns anos mais noutros menos, provocam milhões de mortos por todo o mundo, com a principal diferença que este tinha saído de um laboratório na China financiou uma nova bolha creditícia. Foi o momento de glória dos governantes dos estados ocidentais que aproveitaram o medo da população para se atribuírem poderes excepcionais. Na gestão dessa crise demonstraram a sua total inépcia apesar de terem amordaçado a crítica e adestrado muita Comunicação Social com “ajudas”. A incerteza gerada e a redução da produção de bens e serviços conscientemente ordenada pelas autoridades ajudaram à criação de uma acumulação de poupanças forçadas numa parte importante da população. Essas poupanças foram canalizadas para um novo e brutal aumento da dívida pública (10% do PIB na Europa) apesar de ser consensual que o resultado seria, mais cedo ou mais tarde, a degradação da solvência estatal, o retorno da inflação e a subida das taxas de juro, como aliás, a Oficina da Liberdade, previu num relatório que publicou pouco depois das principais medidas repressivas dos governos terem sido apresentadas logo em 2020. Mais tarde, a Invasão da Ucrânia criou a narrativa de que esta teria sido a origem da inflação e da subida das taxas de juro, quando em realidade o início de ambos fenómenos precedeu em alguns meses o estalar da Guerra (no caso das taxas de juro estas até desceram um pouco quando a Rússia invadiu).
A inflação na União Europeia acumulada nos últimos quatro anos foi de 20%, semelhante ao crescimento do PIB per capita a preços correntes. Isto significa duas coisas: que por um lado a Europa se encontra praticamente em estagnação económica e por outro que foram os mais desfavorecidos a pagar a conta. A inflação é um imposto suportado principalmente pelos pobres, que consomem a maior parte ou a totalidade dos seus ingressos (e, nessa medida, também está subestimada pelo efeito de substituição de bens mais luxuosos e caros por bens mais vulgares e baratos que passam a ter um maior peso no cabaz). No mesmo período a dívida pública aumentou 4% em termos de percentagem de PIB. A inflação do PIB apagou (e pagou via inflação) grande parte do aumento da dívida, mas não toda. Desde 2020 cerca de um terço do crescimento do PIB está diretamente financiado por déficit público, ou seja é justificado por gasto público, não necessariamente por criação de valor. Para além disso, as receitas do Estado aumentaram 23%, recursos retirados à criação de riqueza. Mesmo quando dois terços do gasto público se dedica às rubricas genéricas de Serviços Sociais, Saúde e Educação, e os governantes tenham pouca margem para o cortar, não deixa de ser evidente que o Estado vai reservando para si uma fatia cada vez maior da riqueza produzida, quer emitindo dívida, quer cobrando impostos.
Nestas condições o ressentimento cresceu, para não falar do medo real a um futuro mais incerto entre camadas da população mais desfavorecidas que ironicamente observam como o custo de trabalhar aumenta (a perda de benefícios sociais representa 75% do salário para trabalhadores não especializados). Enquanto o eleitor comum vai sofrendo o aumento da insegurança, a precariedade laboral, o aumento do custo da habitação com a subida das taxas de juro, da alimentação com a inflação e a degradação dos serviços sociais prestados pelo Estado, os políticos vão-se convencendo que tudo isto são invenções, ou, pelo menos, que ninguém faria melhor, que eles é que são os verdadeiros defensores do povo, que o crescente custo da máquina estatal está plenamente justificado e os que não pensam como eles são racistas, machistas, homofóbicos ou negacionistas. Quem está em avançado estado de negação são estas elites. E foi por isso que o Trump ganhou, porque na América muitos democratas, do alto da sua superioridade moral não quiseram ver isto. Na Europa, com a desculpa de Trump e da sua grosseria, tapam-se as desgraças próprias com um discurso crescentemente anti-América. Não obstante, o Vice-Presidente JD Vance veio à Europa fazer uma crítica mordaz sobre o modo como os governantes Europeus se estão a afastar daquilo que os eleitores esperam deles. Disse-o de forma educada e articulada assim que não é a grosseria do mensageiro o que os preocupa. É mesmo o conteúdo da mensagem.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/02/21, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.