Ricardo Dias de Sousa .
Nos finais da década de 60 realizou-se o filme «As Sandálias do Pescador», protagonizado por Anthony Quinn, baseado num romance com o mesmo nome e escrito uns anos antes por Morris West. O romance nunca li, mas o filme vi várias vezes, ainda que já não recorde bem quando o vi pela última vez. Lembro-me também que o filme ganhou uma aura de premonitório com a eleição de João Paulo II, já que contava a história de um cardeal soviético fictício, Kiril Lakota (ainda que baseado noutro bispo Lakota que morreu no Gulag para onde foi enviado pelos bolcheviques) que é surpreendentemente eleito Papa em plena Guerra Fria. Não querendo retirar mérito a Morris, cujo argumento exigia a eleição de um bispo oriundo do Bloco de Leste para um cargo que há mais de quatro séculos vinha sendo exercido exclusivamente por italianos, a verdade é que essa é a única coincidência entre a personalidade de João Paulo II e o personagem que Anthony Quinn interpretou magistralmente uma década antes. Lakota era o ideal que muitos católicos ocidentais esperavam ansiosamente ver na Cadeira de Pedro nessa década de 60 do Vaticano II. Talvez não seja coincidência que esse estilo só tenha chegado com Francisco, o primeiro Papa eleito que não participou directamente no Concílio. Bernoglio pareceu-se muito mais a Kiril Lakota que os seus antecessores.
No filme, Lakota, mais tarde Papa Cirilo, era um peixe fora de água na cultura do Vaticano. Era um homem simples, com fortes alicerces teológicos que, paradoxalmente, o submergiam em dúvidas quando confrontado com a necessidade de agir. Isto porque, para ele, a necessidade de agir correctamente o fazia questionar permanentemente a validez da teologia recebida. Entendia que a Ética era, em primeiro lugar, a faculdade de actuar bem e só depois uma teoria que pode ser deduzida de princípios abstractos. Se a isto se acrescenta uma humildade e pobreza voluntária e quotidiana e a presunção aceite, plena e conscientemente, de que Deus o encarregou de uma missão que passa por melhorar a vida material e espiritual da humanidade temos, nada mais e nada menos, que o Papa Francisco. A única e grande diferença foi que Cirilo sofreu a iniquidade do Comunismo enquanto Francisco pareceu estar atraído por ele. Em sua defesa deve ser dito que a Ditadura que conheceu de perto foi a dos militares argentinos e que sempre desconfiou mais das bondades do socialismo real dos Kirchner do que confiou nas teóricas de Marx.
É fácil gostar de Francisco porque nada daquilo em que acreditava é verdadeiramente anticristão. Francisco acreditava que, como Cristo, vinha para salvar os pecadores e confortar os pobres, pelo que, quem o critica deveria sempre centrar-se sempre no como desempenhou a sua missão. E mesmo esse “como” deve ser analisado com a cautela de quem está a opinar sobre o efémero à sombra do eterno ou, pelo menos, de uma instituição que está entre nós há vinte séculos, com vários altos e baixos. Francisco foi claramente um homem que preferiu a acção à reflexão, que preferiu os pobres aos ricos, que preferiu o diálogo à confrontação, que preferiu a simplicidade à pompa, que preferiu o ecumenismo ao sectarismo, que preferiu a compaixão à penitência, que preferiu o amor à severidade e a partilha à propriedade. E tudo isto o fez um ser querido na sociedade, porque estes são os valores das sociedades ocidentais naquilo que estas têm de melhor. E tudo isto está muito bem na figura de um Papa porque, se estes são os melhores valores das sociedades ocidentais, isso deve-se em grande parte, para não dizer exclusivamente, ao Cristianismo em geral e ao Catolicismo em particular.
Francisco reforça esta ideia de bom cristão com uma teologia que afirma explicitamente preferir São Paulo a São Tomás de Aquino e isso também é algo que deve ser considerado correcto. Não porque Tomás de Aquino seja mau, muito pelo contrário e nem o Papa afirmaria isso, mas porque São Paulo é, a todos os efeitos, a mais antiga referência da Igreja. É, do ponto de vista estritamente histórico, o inventor do Cristianismo. A interpretação da morte e ressurreição de Cristo que chegou aos nossos dias é a que São Paulo pregou e os seus textos, a par dos evangelhos, são os mais encontrados entre os fragmentos dos primeiros séculos do Cristianismo, o que diz muito da importância deste cidadão romano, culturalmente helenizado e religiosamente judeu da estirpe dos fariseus. É a São Paulo que a Igreja recorrentemente regressa em tempos de crise. Foi assim com Santo Agostinho com a queda do Império Romano, foi assim com o movimento monástico que reformou a Igreja durante os séculos X e XI, foi assim com as ordens mendicantes no auge da disputa entre os imperadores e o papa e também na Reforma quando os protestantes, com Lutero à cabeça invocavam São Paulo (e Santo Agostinho) contra os teólogos escolásticos de Roma. Não é, pois, de estranhar que, num mundo que é já em grande parte pós-cristão (os católicos preferem geralmente o eufemismo secularizado) Francisco recorra a São Paulo como guia. São Paulo foi, na tese de Siedentop que eu partilho, o inventor do conceito de indivíduo tal como o percebemos actualmente.
O grande problema de São Paulo é que o próprio acreditava que o fim do mundo estava para breve, muito possivelmente durante a sua vida. O Cristianismo primitivo era uma seita apocalíptica, pelo que o seu modo de vida em sociedade não estava pensado para durar sequer uma geração, quanto mais dois milénios. Assim a grande obra do Cristianismo enquanto doutrina foi conseguir coordenar e equilibrar as ideias revolucionárias de São Paulo sobre o indivíduo, com a conservação da vida em sociedade através dos tempos. Foi assim que durante dois mil anos, aquilo a que chamamos Civilização Ocidental se desenvolveu e sobreviveu, não só às ameaças externas, mas à dissolução através dos vários movimentos restauracionistas que foram surgindo ao longo do tempo: gnósticos, cátaros, hussitas, anabaptistas, socialistas, e muitos outros que amiúde começavam a defender um cristianismo mais puro e acabavam a promover e a padecer em banhos de sangue. Não que Francisco se reveja nestes movimentos, pelo contrário, a infalibilidade papal sempre actuou como um travão a que o Papa não abandonasse as opiniões oficiais da Igreja nos chamados temas fracturantes como o aborto, a eutanásia, o casamento, a homossexualidade ou a ordenação de mulheres, limitando-se a procurar que os católicos se centrassem menos na culpa e mais no perdão. Mas, ao menosprezar a reflexão debilitou a Teologia católica, ao menosprezar os ricos debilitou a moralidade da riqueza no catolicismo, ao menosprezar a confrontação debilitou a fortaleza no catolicismo, ao menosprezar a pompa debilitou a tradição no catolicismo, ao menosprezar o sectarismo debilitou a verdade no catolicismo (e fortaleceu o erro fora deste), ao menosprezar a penitência debilitou a expiação no catolicismo e ao menosprezar a propriedade debilitou a defesa dos católicos contra os abusos do Estado.
Existe uma certa ironia no facto de a Infalibilidade Papal ter servido para impedir os papas de abusar na interpretação estrita da Doutrina Cristã (daí a crítica frequente à Igreja de não viver no mundo actual), ficando-se geralmente por questões marginais, mas não os coibiu de opinar sobre aquilo em que são falíveis como se não o fossem. A Doutrina Social da Igreja é o melhor exemplo desta tendência. Todos os Papas, desde finais do século XIX, deixaram manifesta a sua ignorância neste assunto, mesmo quando alimentados pela melhor das intenções, misturando a doutrina cristã com análises circunstanciais e explicações ideológicas da sociedade. O Papa Francisco não foi uma excepção. O principal problema, quando comparado com os seus dois antecessores, foi que quis impulsar a reforma da Igreja idealizada no Concílio do Vaticano Segundo. A urgência na base do Concílio era que a Igreja estava a perder o combate à modernidade. O objectivo do Aggiornamento era não apenas aumentar genericamente o número de fiéis, mas em especial o das ordenações, daqueles dispostos a dedicar a sua vida à Igreja Católica. Se o número de Católicos parece ter aumentado, inclusive acima do crescimento da população mundial, o número de religiosos não conseguiu acompanhar este ritmo, pelo que cada vez há menos pessoas ordenadas por número de fiéis. Também não é líquido que estes fiéis participem em mais sacramentos, seja por falta de quem os administre, seja por não os querer receber. Se a isto acrescentarmos que o crescimento do Catolicismo se deu fora da Europa, que era a região onde a crise de fé mais preocupava, não é de estranhar que João Paulo II no final do pontificado e Bento XVI durante o seu estivessem discretamente a enterrar o Concílio e a tentar voltar a envolver a Igreja naquela aura de mistério que deve circundar quem se dedica aos assuntos divinos. Francisco, ao querer recuperar o Vaticano II, e apesar de todos os seus esforços em nomear homens de acção pastoral para lugares chave, não conseguiu melhores resultados que os seus antecessores, com a agravante de ter ressuscitado o que de pior a Doutrina Social da Igreja regurgitou em tempos de Paulo VI: que o Estado pode, quer e está em melhores condições para melhorar a condição humana que a organização espontânea da sociedade a que damos o nome de livre iniciativa e mercado, ou que a Igreja no seu assistencialismo voluntário.
Talvez o sinal mais preocupante de que o legado de Francisco possa ser deletério para a Igreja Católica é que todos aqueles que jamais irão colocar um pé numa humilde capela sequer, aqueles que consideram a Igreja Católica um inimigo a abater, se tenham desdobrado em elogios ao papa na hora da sua morte (elogios ao seu humanismo e não à sua fé, entenda-se). Ironicamente, muitos daqueles que desdenhou, criticou e menosprezou durante o seu papado estão neste momento a dirigir-se a Roma para prestar uma merecida homenagem (talvez mais ao cargo que ao homem). Admito poder estar enganado, e de Francisco sairá uma nova e fecunda semente cristã. Afinal de contas São Paulo inventou o indivíduo, quer dizer, a dignidade humana. Mas, neste caso preciso de ver para crer, como São Tomé.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/04/25, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.