André Quintas .
No dia 20 de janeiro de 2025, Donald Trump tomou posse como o 47.º Presidente dos Estados Unidos. No palco da cerimónia, algo nunca antes visto: a presença dos “tech bros”. Elon Musk, o homem mais rico do mundo e dono da X; Jeff Bezos, da Amazon, e Mark Zuckerberg, da Meta. O momento é revelador: a aliança entre o poder económico e o poder político, antes disfarçada, é agora celebrada à vista de todos.
Bernie Sanders, um dos maiores críticos do sistema atual, escreve no seu mais recente livro It’s Okay to Be Angry About Capitalism:
“Vivemos numa ‘democracia’ — mas são eles que a possuem. (…) É por isso que, nos últimos cinquenta anos, temos assistido sistematicamente a políticas públicas que beneficiam os muito ricos à custa de todos os outros.” (tradução minha)
Sanders tem razão: o sistema está viciado, capturado, preso numa teia de interesses entre elites económicas e políticas. Onde Sanders, e tantos outros críticos, sobretudo à esquerda, se enganam, é na identificação do sistema atual com o capitalismo. Acertam nos sintomas, mas erram no diagnóstico da doença: o sistema em que vivemos está longe de ser capitalismo. Na verdade, é a sua negação.
Propriamente entendido, o capitalismo assenta num mercado competitivo, onde as empresas concorrem livremente entre si e onde a entrada é aberta a todos. A lógica é simples mas brutal: vence quem for mais eficiente e melhor servir o consumidor. O verdadeiro capitalismo é, por isso, incompatível com privilégios legais, com monopólios concedidos pelo Estado e, sobretudo, com o conluio entre empresas privadas e decisores políticos.
É até irónico que o capitalismo seja hoje associado a esta realidade de privilégio político e económico, quando, de Adam Smith a F. A. Hayek, os liberais clássicos sempre denunciaram precisamente esse entrelaçamento entre poder económico e poder político, uma crítica que, nesse aspeto, os aproxima mais de Marx do que muitos liberais clássicos gostariam de admitir.
Mas que sistema é este, afinal? Quando a fusão de interesses entre elites económicas e políticas já nem é disfarçada, mas celebrada, fará ainda sentido chamá-lo de “capitalismo”?
O economista Randall Holcombe, no seu livro Political Capitalism: How Economic and Political Power is Made and Maintained, propõe um nome mais adequado: capitalismo político, ou capitalismo de compadrio. Trata-se, segundo o autor, “de um sistema em que elites políticas e económicas cooperam ativamente para benefício mútuo”, o que enfraquece a concorrência de mercado e acaba por distorcer o processo democrático.
Como é que esse sistema se forma? Holcombe identifica no capitalismo dois grupos de empresas distintas: as que querem conquistar mercado (“get ahead”) e as que querem preservar o poder de mercado (“stay ahead”). Como referido, num mercado verdadeiramente competitivo, a única forma de conquistar poder de mercado é ser a empresa que serve melhor o consumidor. Para isso, são essenciais fatores como a criatividade, a capacidade de arriscar e, principalmente, de inovar. Assim, as empresas que querem conquistar share de mercado são essenciais para a satisfação do consumidor, para a criação de valor e para desafiar as empresas estabelecidas num dado mercado.
Se os consumidores beneficiam com esta dinâmica, o mesmo não acontece com as empresas incumbentes que temem perder poder de mercado. É assim claro que estes grupos económicos têm interesses antagónicos: aqueles que querem avançar, beneficiam de mercados livres e competitivos; as empresas estabelecidas, que querem preservar o seu poder de mercado, desejam um mercado o menos livre e competitivo possível.
E é aí que o Estado entra. Para se protegerem da concorrência, as empresas incumbentes irão procurar a ajuda do Estado. Assim, passam a competir também no campo político: pedindo favores, protegendo-se da concorrência e tentando moldar a regulação a seu favor. Este processo será tanto mais eficaz como prevalente quanto maior for a dimensão da empresa e quanto maior for a presença do Estado na economia.
Contudo, Holcombe sublinha que o Estado não é inocente nesta dinâmica. Não se trata simplesmente do poder económico corromper o poder político, como muitas vezes interpretado pela esquerda. Os decisores públicos obtêm financiamento, apoios e influência. Além disso, é importante notar que as empresas que beneficiam da proteção estatal tornam-se dependentes desse apoio, ficando vulneráveis a ameaças implícitas ou explícitas de que os privilégios lhes poderão ser retirados.
O resultado é uma relação umbilical. Ambos os grupos — elites políticas e económicas — estão interessados e enredados nesta interdependência. Ambos beneficiam. Ambos têm interesse em preservar o status quo.
No último capítulo do seu livro, Sanders escreve:
“Temos de deixar de ter medo de denunciar o capitalismo e exigir uma mudança fundamental a um sistema corrupto e viciado.”
Sanders tem razão: precisamos de uma mudança profunda. Mas identificar este sistema com o capitalismo tem consequências sérias na forma como procuramos soluções. Se percebermos que o problema resulta de um conluio entre o Estado e o poder económico – e não apenas da corrupção de políticos inocentes por interesses privados – estaremos melhor munidos para encontrar respostas.
Perceberíamos, assim, que a verdadeira alternativa para pôr fim ao sistema de privilégio político e económico que vigora nas democracias ocidentais, e que deveria preocupar tanto os liberais clássicos como a esquerda, passa por reforçar a concorrência e abrir os mercados. Trata-se também por reconhecer que parte do problema reside no poder brutal e discricionário que os Estados detêm. E isso levar-nos-ia a compreender o quão perigoso, e contraproducente, é propor mais intervenção e regulação estatal para tentar resolver este problema. É como apagar fogo com gasolina.
A critica ao sistema atual não deveria ser uma batalha entre esquerda e direita. Deveria ser uma batalha entre aqueles que querem um sistema económico e político sem privilégios e aqueles que vivem deles. O problema do sistema atual não é o capitalismo. É a falta dele.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/10/03, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
