Pedro Almeida Jorge .
Apesar de concordar com a “proibição da ocultação do rosto em espaços públicos salvo determinadas exceções” (objeto do projeto de lei de que todos falam mas poucos leram), e até com a sua pertinência no atual momento, parece-me que as razões que em geral têm sido aduzidas para a sua aprovação nem sempre têm sido as mais sólidas ou consistentes com os ideais do liberalismo e da liberdade individual. Assim, gostaria de dar o meu contributo para a discussão do tema.
Em primeiro lugar, a meu ver, a principal justificação para esta proibição não deverá prender-se com a ideia de a burca representar uma “opressão da mulher”, pois efetivamente existem mulheres e homens que poderiam sentir-se mais confortáveis (e não oprimidos) escondendo o seu rosto publicamente. É uma questão psicológica e cultural bastante complexa, que felizmente acredito podermos evitar através da apresentação de uma justificação mais fundamental, que tentarei sugerir mais abaixo.
Por outro lado, esta questão cultural liga-se obviamente à questão religiosa, e essa tem sido outra das razões veiculadas (ainda que não no projeto de lei, pelo menos não nestes termos): a burca é um símbolo islâmico que não devemos permitir numa sociedade cristã, sob pena de desvirtuarmos a herança cultural da nossa sociedade. Aqui entramos no tema do multiculturalismo. Como liberal, defendo que a “anormalidade” não pode ser razão para proibição. Trata-se, portanto, desde a minha perspetiva, de uma justificação muito difícil de aceitar, mas cujas preocupações podem, em parte, mais uma vez, ser reformuladas desde um enquadramento mais liberal, como sugiro mais abaixo.
Por fim, tem também sido levantada a justificação da segurança, à qual sou bastante mais recetivo. Concordo que é conveniente conseguir perceber a identidade de uma pessoa na via pública por questões de segurança. O que não concordo é que esse seja o argumento mais forte e basilar para a proibição da ocultação do rosto, pois nesse caso temos um problema com o Carnaval, que é uma ocasião em que todos concordamos que se podem usar máscaras, mas também é uma ocasião em que esse uso de máscaras pode originar perigos de segurança.
A questão mais fundamental, na minha perspetiva, prende-se com o pressuposto da liberdade individual em sociedade, que é a responsabilidade e a responsabilização do indivíduo. A disponibilidade do indivíduo para existir enquanto pessoa e cidadão. O indivíduo “dar a cara”. Concedo que isso possa levantar questões, por exemplo, ao nível da liberdade de expressão na internet, ou dos pseudónimos nos livros, mas aí entramos na luta histórica contra a censura de ideias, tendo a nossa sociedade aprendido os benefícios de permitir a separação entre as ideias e a pessoa que as profere. Com efeito, outro dos pressupostos da sociedade liberal (hoje em dia também em perigo, e muitas vezes conflituante com a cultura islâmica mais radical) é que as ideias em si não são violência (nem merecem violência), e por isso aceitamos que alguém possa publicar ideias sem se identificar.
Ocultar o rosto em público é bem diferente. É recusar a integração na pólis, na comunidade dos cidadãos livres e responsáveis. E a ideia de pólis, fantasias libertárias à parte, foi o enquadramento que historicamente trouxe e garantiu a liberdade aos indivíduos. Conseguimos imaginar que uma sociedade de indivíduos de rostos ocultos pudesse produzir o nível de liberdade de que hoje desfrutamos?
A liberdade individual não existe num vácuo, existe num enquadramento social que a possibilita. E o fundamento básico de uma sociedade baseada na liberdade individual é precisamente que os seus participantes assumam a sua individualidade e aceitem o peso da sua individualidade. Não é um atentado à liberdade individual exigir que quem a reclama assuma a sua individualidade no espaço público, enquanto cidadão inter pares. Faz parte da “ética republicana”, que o PS supostamente diz defender.
Por alguma razão, digo eu, a liberdade individual triunfou e estabeleceu-se na nossa sociedade de indivíduos que “dão a cara” e não nas sociedades de onde vêm estas mulheres que cobrem o rosto. Os pilares da civilização que nos trouxe as nossas liberdades foram erigidos ao longo de milénios e devem merecer o nosso respeito e a humildade de não acharmos que podemos aceitar tudo e mais alguma coisa sem que as suas bases se erodam.
Acrescento a isto que uma das minhas lutas, e creio que a de muitos liberais, é precisamente a de tentar que os portugueses e os cidadãos modernos abracem uma maior responsabilidade individual, por exemplo ao nível do seu futuro financeiro. Vivemos numa sociedade que diz aos cidadãos que são adultos o suficiente para votarem, mas demasiado imaturos para cuidarem de si e do seu futuro. Ocultamos e anestesiamos a sua responsabilidade com um véu de segurança.
Ora, nesta sociedade tão carente de responsabilidade individual, a última coisa de que precisamos, a meu ver, é de normalizar no nosso seio a existência de pessoas que nem a responsabilidade de mostrar o rosto em público assumem. Que tipo sociedade poderão essas pessoas sustentar? A sua existência pública é a da anulação da sua identidade e da sua individualidade. É isso que achamos que vai ajudar a fomentar uma sociedade de indivíduos responsáveis, pressuposto do liberalismo?
Por fim, acho completamente descabido o argumento de que a discussão desta lei é impertinente no momento presente, por quase não haver burcas em Portugal, ou de que os deputados deviam estar preocupados com os reais problemas do país e não com problemas inexistentes (demagogia do bem?).
Tirando o facto de que muita coisa menos relevante é discutida no Parlamento (e que foram aprovados muitos outros projetos de lei e deliberações no mesmo dia), a mim parece-me bastante pertinente que, por uma vez que seja, aprendamos com os outros países e antecipemos um problema em vez de esperarmos que ele já esteja incontrolável. Quando é que seria pertinente legislar sobre esta questão? Quando atingíssemos uma massa crítica de utilizadores de burca no País? E, nesse momento, como é que se poderia viavelmente impor restrições ao seu uso? Talvez precisamente por saberem que não se poderia é que certas pessoas se opõem a que tais restrições sejam discutidas desde já…
Artigo publicado pelo Observador em 2025/10/20, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
