Thatcher não volta

José Bento da Silva                                                                     .

O conservadorismo trata, também, de antecipar o que certamente está mal no novo “mundo de sentido” à luz do que já sabemos ser verdade, mesmo quando não sabemos de onde essa verdade vem.

Celebramos os 100 anos do nascimento de Margaret Thatcher. Não sou um fã incondicional de Thatcher. Tal como não me parece que sempre que Bruxelas emite um novo decreto é como se regressássemos a 1939, também não estou no grupo daqueles que sonham com o regresso de Thatcher sempre que o governo aumenta os impostos. A nostalgia tem uma dimensão poética que não é desprezível, mas encerra em si o perigo de nos prender no passado. Parafraseando Romano Guardini, este é o tempo que nos calhou viver e, portanto, nem tudo é um regresso a 1939, nem aos anos 80…

Dito isto, há algo no tempo presente que nos faz recordar Thatcher e sentir uma certa nostalgia. Olhando para o Reino Unido, eis alguns dados: nunca a carga fiscal foi tão elevada, nunca a despesa do Estado em tempos de paz foi tão elevada, nunca houve tantos funcionários públicos a fazerem tão pouco (pouco mais de 2 dias por semana é quanto tempo passam, em média, no escritório), nunca as despesas com benefícios sociais foram tão elevadas e nunca tantos britânicos em idade para trabalhar ficaram em casa anos a fio sem nada fazerem. São cerca de 9 milhões os britânicos que deveriam estar a trabalhar, mas que nada fazem…

No tempo de Thatcher não era assim. Nem no tempo de Thatcher, nem no de tantos outros. Houve um tempo, não há muito tempo, em que nem a esquerda nem a direita acreditavam que ficar em casa sem trabalhar fizesse sentido. Houve um tempo, não há muito tempo, em que esquerda e direita concordavam nalguns valores básicos. Valores esses que permitiam alguma coesão. Contudo, o tempo que nos calhou viver, o presente, parece repleto de ideias, atitudes, opiniões, propostas, que não raras vezes seriam consideradas perfeitamente idiotas há não mais de 20 anos. Mas muito do que no passado era inimaginável, está hoje normalizado. Num espaço de tempo em muito inferior a uma geração, o mundo das ideias sofreu uma alteração que torna, por vezes, o mundo em que vivemos irreconhecível.

Penso que todos (pelo menos à direita) estamos de acordo nesta análise. Por isso, a questão que importa colocar, sem saudosismos, é: o que fazer? Voltar atrás não é uma opção realista. E não é realista porque remete para um mundo imaginário, o qual está repleto de noções em torno do que é bom (do que deve ser), as quais não têm aparente correspondência com a realidade do presente que nos cabe viver. E que presente é este? Um presente em que determinadas práticas estão de tal forma materializadas e institucionalizadas que a sua mudança é extremamente difícil de conseguir. Na verdade, tais práticas não existem em isolamento, mas numa constelação suportada por ideais, os quais ganharam um carácter simbólico. E é este carácter simbólico que torna as práticas e as ideias que as informam extremamente poderosas, como que carregadas de uma energia extraordinária. Por isso, é impossível voltarmos ao mundo de Thatcher. Por exemplo, uma determinada ideia do que constitui justiça e igualdade informa um conjunto de práticas que permitem a 9 milhões de britânicos não trabalharem enquanto são sustentados por via de benefícios sociais (as tais práticas que seguem de forma coerente um ideal que estipula o que constitui justiça social). Esse ideal de justiça não existia no mundo de Thatcher. Mas existe hoje e está na base daquilo que Ernst Cassirer denomina de “forma simbólica”.

Para Cassirer, os humanos têm uma capacidade que os distingue e torna únicos: conseguem imaginar e criar “formas simbólicas”, como a linguagem, o mito, a religião, a arte, ou a ciência a partir do nada. Cada uma destas “formas simbólicas” tem um princípio que guia, constitui e estrutura diferentes “mundos de sentido” encerrados em si próprios. E cada um destes “mundos de sentido” tem uma gramática própria, gramática essa materializada em práticas simbólicas, as quais, por sua vez, permitem que um novo mundo avance por via de pequenas alterações bastas vezes imperceptíveis. E é assim que novos “mundos de sentido” são criados. Por exemplo, uma pequeníssima alteração na forma simbólica da ciência permite classificar tudo e mais alguma coisa como um problema de saúde mental. Classificação essa que permite que milhões de britânicos sofram agora de uma condição de saúde mental, a qual justifica a materialização de benefícios sociais. Milhões de britânicos ficam, portanto, em casa por conta de um ideal de justiça que constitui um novo “mundo de sentido” em que o que agora faz sentido é que ninguém sequer questione a validade científica de milhões de diagnósticos. Pois também a ciência, enquanto uma das formas simbólicas identificadas por Cassirer, mudou por via de um novo ideal em torno do que constitui verdade. Verdade científica já não é uma forma de representação do real, mas um processo de desconstrução de realidades passadas agora tidas como resultado, não de um método dito científico, mas sim de estruturas de poder.

Por isso, os diferentes “mundos de sentido”, de acordo com Cassirer, são incomensuráveis. O que torna a nostalgia conservadora uma busca pelo impossível. O mundo de Thatcher é incomensurável com o nosso mundo, mesmo que alguns de nós resistamos ao novo “mundo de sentido”. E o nosso “mundo de sentido” resulta de conflitos dialécticos (e não só) com o “mundo de sentido” que coube a Thatcher viver. Sucede que as “formas simbólicas” e os “mundos de sentido” que aquelas constituem são fruto de uma forma imaginada de ver a realidade. Estas formas imaginadas de ver a realidade não representam sensações ou percepções daquilo que é visto, mas co-constituem o que é visto. O mundo simbólico que nos permite imaginar uma determinada forma de olhar para a justiça social, por exemplo, não necessita de dados para representar, por via de dados, um ideal de justiça. O que é visto (a justiça social) e a forma como imaginamos (a justiça social) são co-constitutivos. O que explica a razão pela qual aquilo que imaginamos ser, passa a ser.

No “mundo de sentido” do tempo de Thatcher, o que era não coincidia com o que imaginávamos ser. Por isso, factos da economia então tidos como, lá está, factos, eram imaginados como sendo factos. Havia uma coincidência. Esse “mundo de sentido” já não existe: o “mundo de sentido” económico de Thatcher não existe. Assim, por exemplo, a pobreza já não é o estado natural a partir do qual nos desenvolvemos, mas o resultado de estruturas de poder e de injustiças as quais mudam caso simplesmente mudemos a forma como as imaginamos. O leitor com paciência para ler até aqui certamente já percebeu que o conflito entre “mundos de sentido” pode explicar a polarização política: porque vivemos uma época de transição de um “mundo de sentido” para outro “mundo de sentido”, e como estes são incomensuráveis, o conflito é inevitável e saudável (desde que mantido dentro de certos limites, como é evidente).

Obviamente, há aqui uma dimensão espiritual, e até de magia, atrevo-me a dizer. A simbolização e a criação de um novo “mundo de sentido” são o resultado de práticas espirituais e materiais. É Cassirer quem o diz: configurações materiais de signos e imagens são unidas a um sentido “não-material”. Este jogo (expressão minha) permite criar um número infinito de “mundos de sentido” a partir do nada, do “não-existente” no actual “mundo de sentido”. O mundo “pula e avança” (expressão popular, certamente não de Cassirer) por via da produção de novas constelações de práticas informadas por novos ideais.

Dito tudo isto, a verdade é que não sabemos de forma suficientemente detalhada como é que novas formas simbólicas e novos “mundos de sentido” emergem. Cassirer era um filósofo, não um sociólogo. Sabemos, contudo, a partir da história, que novas formas simbólicas tendem a originar novas constelações de eventos as quais eram desconhecidas dos agentes históricos da altura. Os efeitos de uma nova “forma simbólica” e do novo “mundo de sentido” que esta origina não são possíveis de prever. O que justifica, penso, os sentimentos de nostalgia (que bom seria se voltássemos atrás no tempo), de incerteza (este é um novo “mundo de sentido que ainda não faz sentido”) e de cepticismo (o “mundo de sentido” que aí vem é pior do que o anterior) que caracterizam uma boa parte do conservadorismo actual. Não me parece que isso seja mau. O conservadorismo trata, também, de pensar a que ritmo é que o novo “mundo de sentido” avança; o conservadorismo trata, também, de ponderar o que não faz sentido no novo “mundo de sentido”; e o conservadorismo trata, também, de antecipar o que certamente está mal no novo “mundo de sentido” à luz do que já sabemos ser verdade, mesmo quando não sabemos de onde essa verdade vem. E tudo isto permite-nos saber duas coisas: o “mundo de sentido” de Thatcher não volta; o novo “mundo de sentido” que nos cabe viver não vai durar muito… A realidade dos factos é impiedosa.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/10/24, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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