Ainda a flotilha

José Meireles Graça                                                                       .

Por mim, vi sobretudo o cómico da viagem e abundei de tal modo em piadas foleiras nas redes que cheguei a sentir alguma simpatia: é difícil detestar quem nos faz rir.

Disse algures o esquecido Milan Kundera que o que distingue a direita da esquerda são as bandeiras. As bandeiras são causas, a esquerda tem muitas e vão mudando.

Nos bons tempos em que ser intelectual era ser de esquerda, e ser de esquerda queria dizer mais vezes sim do que não ser comunista, o mundo era perfeitamente inteligível: quem detinha a propriedade dos meios de produção era o explorador, quem trabalhava por conta de outrem o explorado, o intelectual esclarecia as massas sobre a inelutável evolução para a igualdade, do lado mau da história estavam os EUA e do lado bom vários regimes a gosto de cada capela: a URSS, a China, a Coreia do Norte, a Albânia, o Vietname do Norte, Cuba e muitos outros.

Esse mundo nítido ruiu com a queda do Muro. E já muito antes os julgamentos de Moscovo, a invasão da Hungria, o Holodomor, as denúncias de Khrushchov, as demências de Pol Pot, o Grande Salto Para a Frente de Mao e inúmeros outros episódios da tragédia comunista do séc. XX haviam empurrado muitos intelectuais comunistas e os seus cachimbos pensativos para os braços da social-democracia.

Nem todos. Muitos precisaram de 10 tragédias, outros 15 e outros 54. E, não devendo ter ficado nenhum, não só ficaram bastantes como ainda andam por aí: a igualdade material entre os cidadãos é o absoluto bem e a hidra capitalista tem sete cabeças, todas hediondas, mas pode ser domesticada se lhe corrigirmos democraticamente os defeitos até que passe a ser uma pomba. E se não pode ser com revoluções, que já não há operários e o poviléu ganhou alguma devoção àquela coisa das eleições, então vamos dedicar-nos ao ramo dos sentimentos. Pode até ser que ditaduras do proletariado, propriedades colectivas, vanguardas e o resto da tralha ideológica do comunismo estejam no depósito das velharias, mas continua a haver pobres (ao menos relativos, isto é, já não morrem de fome mas veem pelas montras a comida gourmet), ofendidos de vária pinta, reais ou imaginários, e injustiças de todo o tipo que só o Estado pode, e deve, corrigir, desde que os órgãos que o preenchem tenham as políticas certas.

Como fazer, então? Há que criar um clima de moralidade pública que faz da desigualdade um inimigo a abater e da igualdade um objectivo nobre, mas não se lhe chama igualdade, chama-se-lhe justiça social. É muito prático: assim, por exemplo, quem quiser aumento de impostos é a favor da justiça. E para que serve o aumento de impostos? Para distribuir, coisa que só se pode fazer através de agências do Estado, o qual vai crescendo de tamanho mas de forma virtuosa, que se reforça se impuser comportamentos religiosamente regulados, como no ambiente e na saúde.

Não está mal visto mas longe de perfeito. A coisa tende a derrapar porque há poucos a pagar para muitos a receberem e a comunicação social às tantas atroa os ares com aqueles números que já toda a gente aprendeu (dantes só tínhamos um pouco de médicos, agora também de economistas) de taxas de crescimento, inflações, desempregos e outras aflições. Mais: há países que vão à falência, de modo que ainda antes de acabar com os ricos para ficarem todos remediados safam-se os primeiros porque se safam quase sempre e os outros ficam muito pior do que estavam. O regime democrático com liberdade de opinião permite que se escaqueire muito mas não permite que se escaqueire tudo e às tantas quer é cola.

Desespero, portanto: Benefícios, subsídios, apoios, serviços gratuitos, sim, e a nossa esquerda comunista está sempre, com o seu generoso coração, a favor; mas défices, dívida, que seriam ideais para em cima deste Estado fazer outro alternativo, o eleitorado, com a sombra dos credores a torcerem o nariz, diz que não.

Ou seja, a história ensinou o eleitor a não querer liquidar completamente o patrão, o rico, o explorador. E tornou-se tão lúcido que a esquerda comunista (incluindo filhos, primos e afilhados, que aquilo é gente de grande parentela) tem falta de clientes. É aqui que entram os imigrantes, os desalinhados sexuais (o colectivo LGBTurbo), os alegados descendentes de escravos, e até as mulheres, vítimas como se sabe do heteropatriarcado tóxico, excepto quanto a estas pelo facto de muitas serem feministas de direita, vá lá Deus, ou o Diabo, entenderem.

Novas clientelas, já se vê, mas diferentes do antigo operário disciplinado: derrubar uma estátua que representa o branco opressor não é bem a mesma coisa que organizar uma greve, mas todas as migalhas são pão.

Cidadãos somos todos, uns bons e outros maus, e os bons tendem a ser os que dantes levantavam o facho dos amanhãs etc. e os maus os mesmos de sempre. Nos países é igual. E temos debaixo do nariz o caso de Israel, uma ilha democrática num mar de ditaduras, gente de dinheiro que transformou um deserto num jardim, com o apoio do Grande Satã e da diáspora judaica, ao lado de uns pobretas que não transformaram a terra que lhes coube em coisa nenhuma porque o apoio que sempre receberam de todo o lado se sumiu em túneis, mísseis e outros armamentos, e a energia a gastaram não na construção mas na guerra permanente.

Ente uns e outros, entre o pobre e o rico, entre o Americano e o Árabe (este cada vez menos, quem leva o pendão do revolucionário terceiro-mundista agora é o Persa, mas não vamos complicar), entre Netanyahu e um Ali qualquer, a esquerda (a comunista por definição, parte da restante porque lhe fica barato apoiar o mais fraco) haveria de apoiar quem?

Apoiar é como quem diz. Que pôr um keffieh e ir passear de barco para o Mediterrâneo é uma boa operação de propaganda, nada diferente, na essência, de atirar uma lata de tinta a uma pintura para protestar contra a indústria do petróleo, mas não vai modificar em nada nem a natureza do conflito nem o resultado da guerra. O que os excursionistas disseram foi isto: Protestamos porque existimos e, do que existe, somos a nata; e o que as pessoas de discernimento perceberam foi que, porque protestam, existem.

De maneira que sobre os propósitos reais da viagem, quem a organizou e apoiou, e qual o lado que merece apoio, não disse nada porque vozes melhor do que a minha, incluindo neste jornal, já explicaram abundantemente por que razão se deve estar do lado de Israel. Por mim, vi sobretudo o cómico da viagem, o inexistente apoio humanitário, a duração, as cantarolices a bordo, a vitimização contra uma recepção mais do que tolerante para um teatro de guerra, as cabriolas jurídicas em torno do direito internacional inventado para a ocasião, e abundei de tal modo em piadas foleiras nas redes que cheguei a sentir alguma simpatia: é difícil detestar quem nos faz rir.

Defeito meu com desculpa. Que uma guerra não é uma peça de teatro ou um filme: não faltaram civis alemães mortos, mas nem por isso Chaplin deixou de gozar com Hitler. Hitler, neste caso, é quem espoletou o conflito com um atentado bárbaro e mantem um campo de concentração debaixo da terra onde tortura e liquida aleatoriamente prisioneiros cuja culpa é serem… Judeus.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/10/12, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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