José Rentes de Carvalho .
De si, caro compatriota a viver entre o Minho e o Algarve, ninguém espera que ao acordar, ou mesmo pelo dia adiante, se aflija com a situação da Pátria, já que para desconforto lhe chegam e sobram as exigências da vida e as prioridades que ela estabelece.
Uma vista de olhos ao jornal ou o noticiário da TV poderão, um instante, picar-lhe a curiosidade, deixá-lo arreliado e de mau humor, mas logo depois o trabalho, a família, pesos e obrigações de toda a ordem se encarregam de o embrulhar num manto de exigências, de cuidados, que pouco tempo, e ainda menos vontade, lhe deixam para se preocupar com “os interesses superiores da Nação”, tanto mais que desses se encarregam, e juram tratar com superior competência, os governantes que elegeu.
Mas a sua vida, a verdadeira, a crua e penosa realidade do seu dia-a-dia, nem de longe tem a ver com as manigâncias dos fantoches que se passeiam em cuecas, ou aplicam na governança os truques que aprenderam na “vermelhinha”, mas com o preço do bacalhau, da gasolina, os problemas do colesterol, a hipoteca, a conta da luz, o saldo no banco, as fraldas da Margarida.
O emigrante, falo por experiência, também não anda com as dores da Pátria às costas. Conseguiria até, dada a confortável distância da separação, e as circunstâncias do ambiente em que vive, olhar com certo desprendimento as aflições e peripécias da terra onde nasceu.
Conseguiria, digo, mas não quer nem o deixam. Porque a Pátria lhe dói, e a gente à sua volta com genuíno interesse o interroga, pede-lhe que explique, pasma-se, sem ironia, de que Portugal seja Europa, e tão pouco ou nada se veja das desmesuradas esmolas que recebe.
Perguntam-lhe, perguntam-me, o que torna possível uma Justiça assim. Aqueles processos que duram eternidades, ou terminam como malabarismos de circo, os milhares de milhões que desaparecem dos bancos, a corrupção de cima abaixo, os projectos faraónicos, o fausto dos políticos, as desigualdades de um Terceiro Mundo. Perguntam de boa-fé, livres de malícia ou desdém, e todavia sem querer me envergonham, nos envergonham.
Vêm aí mudanças. Muitas. Para pior. Sabem-no os senhores que mandam na república – res publica, a que devia ser de todos mas não é – e continuarão a jurar que fazem o melhor que podem, se culpa há você a tem.
Vão-lhe demonstrar que sempre foi e continua a ser tolo. Não o farão com reprimendas, mas com leis, ukazes, medidas e regulamentos, proibições, adulterando a Democracia que lhe prometeram, e eles transformaram em suculenta reserva de caça privada. Enriquecendo-se e empurrando-o a si para a miséria, aquela em que, lentamente, não se morre só de fome, mas de carências, desleixo, desespero e vergonha. Gozando da sua boa-fé e mansidão, gozando de o verem acanhado e crente, esperançoso, ajoelhado em Fátima.
Ao contrário do que fizeram os mandões do Estado Novo, pais e avós destes, a si já nem migalhas deitam: recomendam-lhe que seja manso, aguente sem queixas, continue a acreditar que as vacinas lhe garantem longa vida, se iluda com a igualdade que nos faz tão desiguais.
Vai votar quando as eleições vierem? Julgando que cumpre, que o voto conta, e eles o respeitam como pessoa e cidadão? Meu caro, triste, ingénuo, infeliz compatriota, abra os olhos à realidade. Não consinta que o continuem a esbulhar e desprezar. Acorde. São horas de deitar para o esgoto a banha de cobra. E esses senhores com ela.
Artigo publicado pelo Observador em 2022/10/21, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.