José Meireles Graça .
A sabedoria convencional diz-nos que a sociedade americana está completamente fracturada e que o mecanismo da tolerância gripou, os antigos adversários tendo passado a inimigos. E como naquela terra, que é a dos cowboys, e dos gangsters, e da Mafia (essa importada), e das abundantes armas, que existem em quantidade nas mãos dos cidadãos, como na pacífica Suíça, mas que têm tendência a sair dos coldres, ao contrário do que sucede naquele país alpino, o que podemos esperar é cada vez mais violência.
Duvido. O assassinato de um notável influencer de direita traduz a dificuldade que, lá como cá, há em aceitar que a esquerda e o seu estado social, a sua fiscalidade opressiva, a sua burocracia sufocante, a sua comunicação social afogada em mesmice e dependência, o seu adquirido em costumes, o seu internacionalismo acéfalo feito de negação e desprezo das idiossincrasias patrióticas, a sua crescente repressão do dissenso através de leis restritivas da liberdade de opinião, tenha chegado ao fim. O momento é de mudança e as mudanças, como os partos, são por vezes dolorosas.
Mas a mudança chegou, mesmo que outra esquerda, não esta, depois de lambidas as feridas das sucessivas derrotas, se reinvente fazendo marcha-atrás no seu desprezo pelas preocupações das pessoas comuns, que não querem perder o seu sentimento de pertença, não acham o patriotismo ridículo e não querem os seus costumes e crenças religiosas submergidos em vagas de invasores alienígenas sem nenhuma vontade de integração e muita de nos fazer integrar nós na cultura dos países de que são originários. Os EUA são o produto de uma feliz invenção de instituições que têm resistido à prova do tempo, um cadinho social enformado por um fundo liberal (no sentido europeu da palavra), não são um México ou Brasil em ponto grande, muito menos um desses países encalhados na Idade Média. São isso e, goste-se ou não se goste, há pelo menos metade dos americanos que não querem que seja outra coisa, a metade da outra metade sendo pelo menos ingénua.
Cabe aqui um parêntesis para enxertar uma diferença (entre muitas) entre os EUA e a Europa: é que lá há um respeito social enraizado por todas as confissões religiosas, necessário porque a dimensão religiosa é muito importante na vida dos americanos. Quando muito, poderá haver na prática, sobretudo em meios pequenos, desconfiança de quem não tenha religião alguma. Mas cá há o muçulmano, que em vários lugares onde tem expressão significativa crescente já nem se dá ao trabalho de fingir o respeito que não sente e pelo contrário, pela voz dos seus clérigos mais sinceros ou descarados, confessa a intenção de subverter as leis civis e penais dos países de acolhimento, anulando séculos de evolução que confluíram no estado de coisas que temos. Como aliás já fazem nos bairros que dominam em muitas cidades europeias.
As esquerdas negam isto porque contam com estas legiões para, votando, lhes susterem o declínio; e, instintivamente, tomam-se por cavaleiros andantes da sua superioridade moral, defendendo o pobre (o imigrante) do rico (o natural).
Temos assim que os EUA não são a Europa, não têm as mesmas taxas de encarceramento, nem a mesma legislação penal, nem o mesmo clima social, nem a mesma religiosidade, nem sobretudo a mesma história. E, de resto, a Europa, ela própria, tem mais de trinta realidades diferentes, umas mais e outras menos parecidas com os EUA.
Estas diferenças autorizam que não poucos comentadores resolvam problemas complicados com ideias simples: Há muitos assassinatos com balas? Há que proibir o porte de armas. Que se dane o facto óbvio de não ser por isso que deixaria de haver assassinatos políticos; às urtigas a ideia, que tem a maioria dos americanos, de que abdicarem da possibilidade de se defenderem e confiarem para isso unicamente no Estado, é uma receita suicidária; adeus à segunda emenda, abrindo a porta a remendar outras emendas; e se na Europa funciona, por que razão não funcionará lá? – isto é tudo a mesma coisa e a bem dizer um Americano é um Suíço que fala Inglês.
Charlie Kirk foi assassinado porque era um homem dos novos tempos. Fascista porque defendia a liberdade de opinião; pregador do ódio porque andava pelas universidades a tentar explicar que o respeito das opiniões dos outros é incompatível com a cultura do cancelamento; trumpista porque só seres primários e malévolos o são; e inimigo dos pobres e deserdados porque defensor do Estado mínimo. Finalmente porque num discurso em 2023, e isso resume o núcleo do seu pensamento, disse que “all men are created equal in the eyes of God, all men and women, but not all cultures are created equal”.
Diabo, descontando a referência ao plano divino, poderia dizer a mesma coisa. Vai-se a ver e, a julgar pelos milhares de artigos, comentários e declarações lá, cá e em toda a parte, também eu poderia ser assassinado a bem da Humanidade, facto funesto que não me dava jeito nenhum, não fosse estar protegido pela minha insignificância.
O assassinado faz parte de uma longa galeria de pessoas ilustres que resumiram em si tempos de mudança, não era o fautor de uma guerra civil – já não há escravos para libertar nem Estados que se queiram separar.
Guerra das ideias isso sim. Não falta quem ache que as instituições, incluindo tribunais, tomaram o freio nos dentes: num sítio anulam-se eleições porque deram um resultado inconveniente, noutro impede-se um candidato de se apresentar às eleições, noutro ainda uns juízes mandam um político para a cadeia enquanto um colega diz que não há quaisquer provas de crime. Todos desalinhados do consenso do bem-pensismo e todos vítimas da resistência tenaz do mundo velho.
Guerra? Tenham juízo: Mandar a senhora Von der Leyen para casa ou o eng.º Guterres para a reforma não é a mesma coisa que pô-los diante de um pelotão de fuzilamento.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/09/19, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
