Maria Villaret Frischknecht .
Num dia quente de verão em Bruxelas, estava sentada ao meu lado uma família. Estávamos dentro de um comboio, com quase quarenta graus, e o pai, para aguentar a canícula, levava uns calções curtos, chinelos e uma camisa fina de algodão.
A mãe, e as três filhas, não tinham tanta sorte: a sua religião exige que as mulheres cubram corpo e cabeça, faça chuva ou faça sol. Aguentem-se.
Mais recentemente, na manifestação de 17 de setembro, em frente à Assembleia da República, cinco mil migrantes juntaram-se para reivindicar o “direito a documentos”, o “reagrupamento familiar”, a “libertação dos imigrantes detidos em centros de instalação”, e exigindo o fim da discriminação.
Não entro, de propósito, no debate sobre essas reivindicações -a sua análise caberá a quem lhes reconheça fundamento.
Mas vou entrar na demografia dos manifestantes que observei, nessa tarde, junto à escadaria da Assembleia: é que, das cinco mil pessoas que lá estavam, só vi quatro ou cinco mulheres migrantes, sem contar com aquelas que andavam de megafone a galvanizar a multidão e que, pelas inflamadas e tradicionais palavras de ordem, não podiam senão fazer parte das associações ocidentais de esquerda que organizaram o movimento.
É certo que o jornal Público colocou logo na capa de um artigo a foto de uma mulher (com a cabeça coberta, claro), a propósito desta manifestação, para antecipar potenciais crónicas como esta. Mas, na verdade, quem lá tenha passado, ou tenha visto as imagens na televisão, sabe que as mulheres imigrantes naquela manifestação se contavam pelos dedos de uma mão.
À semelhança do que me aconteceu no comboio belga, pensei: onde andam as feministas, as defensoras dos direitos das mulheres, nestas duas situações ? Onde anda a esquerda, incansável nos discursos, mas covardemente ausente perante as consequências reais do multiculturalismo?
Ninguém se pergunta porque é que no meio de cinco mil imigrantes de países maioritariamente islâmicos, não há quase mulheres? Onde estão? Não existem? Ou não têm autorização para, também elas, sair à rua e reclamar direitos? Estes milhares de homens não têm mulheres, irmãs e filhas? Ou vão tentar convencer-nos de que todos, quase todos, quase cinco mil, aguardam pelo reagrupamento familiar e que a culpa é da ineficiência do Estado Português? Ubi sunt mulieres?
Mas nem tudo é mau: situações como estas dão-nos a oportunidade de observar a dicotomia quase esquizofrénica que a esquerda vive hoje.
Por um lado, proclama-se campeã solitária das mulheres, da emancipação feminina e da justiça social.
Mas, por outro, quando a desigualdade se apresenta em trajes de fé islâmica e através de uma ausência ostensiva das mulheres do espaço público, já não há opressão, há “diferença cultural”; já não há silêncio, há “respeito pela diferença”. E assim, de mansinho, a desigualdade ganha estatuto de virtude.
Para a esquerda, admitir a hipótese, ousar sequer pensar que estas mulheres talvez queiram simplesmente sair à rua, ter opinião e não viver escondidas porque, há séculos atrás, alguém as declarou inferiores e impuras, já é prova e sentença suficiente de racismo, xenofobia ou intolerância.
Será que a esquerda acredita mesmo que viver assim é uma escolha, livre e esclarecida, destas mulheres? Não pensará a esquerda, não duvidará por um segundo, que talvez elas vivam na sombra porque a sua religião e cultura a isso as obriga?
A esquerda ajoelha-se perante a ideia de que esconder mulheres é liberdade religiosa. Não defende mulheres, defende dogmas. E com esta incoerência cava a sua própria sepultura, soterrando a verdade e, com ela, a voz das mulheres.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/10/14, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
