E agora?

José Meireles Graça                                                                                                                                                       .

A segregação irracional do Chega deixa-o livre para acentuar a sua pulsão de cavalgar todo o descontentamento.

Touradas parlamentares nada têm de inédito, a não ser que nunca se tivessem visto no Parlamento Britânico ou na Câmara de Representantes americana, duas instituições indiscutivelmente democráticas. Cá por casa era melhor evitá-las, que a população já tem, sobre políticos, opinião suficientemente negativa.

Que se passou? Nesta altura já é possível concluir que: i) Terá havido um entendimento entre o ainda líder da bancada do PSD e o líder da do Chega, segundo o qual um apoiava Pacheco de Amorim para vice-presidente da Assembleia da República e o outro Aguiar-Branco para presidente; ii) Semelhante entendimento terá sido percebido pelo Chega como um acordo exclusivo, quando outros partidos terão sido abordados; iii) André Ventura trombeteou o resultado (a distinção entre “entendimento” e “acordo” é inteiramente irrelevante); iv) Paulo Rangel, vice-presidente do PSD, Nuno Melo, vice-líder da AD, e outros da área da AD, vieram desmentir a existência do tal entendimento; v) Nem Montenegro nem Miranda informaram Melo e Rangel dos contornos da situação, ou informaram e estes concluíram que o que houve foram apenas conversas sem carácter de exclusividade; vi) É possível que tudo isto não passe de erros de percepção mútua, como disse Mário Centeno em 2017 a propósito de uma trapalhada olvidável com a Caixa Geral de Depósitos; vii) Tratar Ventura assim talvez resultasse com outros, imaginar que engoliria o destrate é tolice ou cegueira; viii) A solução a que se chegou, mesmo que nas circunstâncias de impasse tivesse sido a melhor, reforça o capital de queixa do Chega, que este vai explorar até ao enjoo.

Nada disto, que tem um carácter incidental e será esquecido, altera o pano de fundo. Qual é ele?

É melhor não ouvir muito alguns eleitos do Chega, que eles foram recrutados fora do aquário político e ainda não tiveram tempo para uma esfregadela com polirina retórica, entregando-se às vezes a uma toada colérica (ver aqui, p. ex., ao minuto 14,40). Os da frente da bancada, digo, que os de trás são como os outros dos grandes partidos: estão ali umas cabeças mas para entre a família, que o eleitorado nem os conhece, e num ou noutro caso graças a Deus.

Nas ideias é igual: Castração química? Prisão perpétua? Reforço dos poderes das polícias? Reforma da Justiça com diminuição das garantias (com confisco, p. ex., dos bens dos acusados de corrupção, isto é, com penas antes das sentenças)? Baixa de impostos conjugada com aumento permanente das despesas do Estado com salários de grupos vociferantes, num pano de fundo de aumento de receitas fiscais delirante? Etc.?

Isto, uma visão estreita estrategicamente errada dos interesses de sobrevivência dos partidos de direita e um condicionamento geral da opinião publicada pela suposta infrequentabilidade do Chega levaram ao “não é não”.

Sobre o “não” disse antes das eleições o que (me) convinha. Ao que acrescento agora que quem julga que a ascensão entre nós, ecoando o que já antes vinha sucedendo lá fora, de um partido inequivocamente de direita é um fenómeno passageiro do tipo do partido eanista de há umas décadas, está enfiando um dedo num olho até ao cotovelo.

Uma parte do eleitorado cansou-se dos serviços públicos que o são cada vez menos; do mundo oficial que soterra em cansado e impotente paleio a percepção de que os filhos vão viver, se ficarem cá, pior do que os pais; da Justiça de faz-de-conta; dos imigrantes que surdem de debaixo das pedras como se fosse uma fatalidade sem remédio os filhos que as portuguesas não têm, e os das que os têm mas fogem daqui, serem substituídos por filhos de estrangeiras que, em muitos casos, dificilmente deixarão de constituir guetos inassimiláveis; e da difusa percepção geral de que, numa Europa que perde lugares no mundo, Portugal perde-os na Europa.

Tudo isto e mais é o resultado de décadas de governos de esquerda. E até mesmo a saudade do tempo cavaquista do crescimento convergente assenta no equívoco de que o que então foi feito, isto é, a simples liquidação de uma parte do PREC económico, que Cavaco operou com mérito, pode hoje ser reproduzido.

O cavaquismo, a saber, um módico de liberalização da economia combinado com afluxo de fundos e a integração europeia, funcionou porque era um choque positivo com a realidade de então, que agora inexiste. E essa mesma integração vem criando mal-estar por toda a parte, ainda que aqui menos por não sermos o pobre da má-resposta, porque as populações vêm-se lembrando que as identidades nacionais não são bem uma antiqualha que a classe política europeia pode pontapear por ser depositária de uma procuração que ninguém lhe passou.

A direita veio para ficar, o resultado das eleições diz, para quem o souber ler, isso. Que venha com exageros está na ordem natural das coisas. Limar esses exageros, e integrar o Chega num novo xadrez em que o país da opinião, dos costumes, dos poderes, da legislação, das instituições, da alternância, deixe de ser uma coutada de mundividências de esquerda (isto é, estatismo, engenharia social completa com doutrinação de crianças, impostagem sufocante da iniciativa privada, criação de grupos sociais permanentes dependentes das migalhas orçamentais, genuflexão perante delírios woke e igualitaristas importados de universidades americanas, e um longo etc.), deveria ser o norte das novas atitudes políticas.

Vai ser assim?

Ninguém sabe, e eu menos ainda, se o Governo AD é para durar dois meses ou dois anos; e também não se adivinha a jigajoga parlamentar, se para fazer passar leis se encosta preferencialmente à direita ou à esquerda, ou se tem dias. Não se adivinha mas vai-se desenhando a tese de que as famosas reformas, que Luís Aguiar-Conraria acha que não se devem fazer porque, com Ventura e o Chega, seriam naturalmente um desastre, são desejáveis desde que, como diz António Barreto, com “coligação das forças políticas centrais e moderadas”.

Tradução, necessária para a correcta interpretação dos dialectos destes dois magistrados da opinião: Fazer melhor do que os socialistas é viável apenas no caso de os socialistas serem outros, coisa que não é possível porque perderam as eleições, e ademais é só nuvens negras no horizonte, diz um; e lá que perderam perderam, diz o outro, mas o melhor então é fazer uma aliança com eles para reformarem agora o que não reformaram nos últimos oito anos, no governo minoritário porque tinham as mãos atadas e no maioritário por falta de vagar, supõe-se. “Coligação das forças políticas centrais e moderadas? Está nas cartas. Mas há quem não queira ver”, diz Barreto, com duas fundas rugas de preocupação cavadas na fronte inspirada.

Ambos respeito, e de um sou amigo, mas convém ter claro que não há reformas que valha a pena fazer para as quais o PS seja útil (salvo a revisão da Constituição, que não é urgente e, talvez, a da Justiça), pela muito boa razão de que reformar é demolir o Estado socialista na sua floresta de “serviços” públicos, na sua diarreia legislativa e regulamentar, na sua vénia ao modernismo acéfalo de inspiração progressista, no seu patrocínio de uma Autoridade Tributária omnipotente e mafiosa, no seu permanente vezo de identificação entre propriedade pública e serviço público, na sua pretensão de escolher as empresas com futuro e em muito mais – no seu intervencionismo, em suma.

Não se sabe se o Chega está à altura desse papel reformista, apenas que o PS não está. E sabe-se também que a direita, isto é, a vontade de mudança, ganhou esmagadoramente as eleições. Não fazer nada para além do simples pagamento de promessas (em si mesmas muito perigosas e que deverão ser caldeadas por medidas de racionalização e poupança – mas disso não se trata aqui) será uma denegação da esperança.

Só isto? Não, há mais e de índole prática: Governar é escolher e escolher é desagradar a alguns no imediato. Ou, se não for assim, desagradar à maioria a prazo. A segregação irracional do Chega deixa-o livre para acentuar a sua pulsão de cavalgar todo o descontentamento, resolver todo o imbróglio, ultrapassar toda a dificuldade a golpes de simplismo – e crescer. Crescer: precisamente o principal motivo pelo qual os partidos tradicionais de direita, incluindo o meu, o olham de viés. Dos outros nem falo, que ou são associações folclóricas, como o Livre e o PAN, ou comunistas na versão fóssil, como o PCP, ou na milenarista como o Bloco.

Vamos ver, como dizia o ceguinho. Para já, porém, parece haver um número excessivo de estrábicos.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2024/03/29, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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