José Meireles Graça .
Há um inimigo principal e outros secundários, o leninismo neste ponto é da maior utilidade.
Bolieiro, nos Açores, vai governar em minoria – a mesma anunciada escolha da AD para o todo nacional se o resultado das eleições de 10 de Março não der (como tudo leva a crer não dará) maiorias absolutas, mas lhe for favorável.
Duvido que Bolieiro tenha sido influenciado, para esta decisão, pela estratégia da liderança nacional do seu partido – o homem parece dono do seu nariz e os locais, como aliás os da Madeira, não precisam de se preocupar excessivamente com o que acham ou não acham os do continente.
De modo que pode bem tratar-se da constatação de que com o pessoal político residente do Chega a coabitação não seria possível, ou da crença, neste momento já infirmada, de que o PS se absteria para deixar passar o Orçamento. Não sei nem tenho indevida curiosidade em conhecer as idiossincrasias das fulgentes personalidades ilhoas nem compro as complicadas teses dos analistas que tendem a ver o que lá não está, como as naus no Tejo. E, portanto, não reconheço ali, salvo a tendência geral de derrota da esquerda e da vitória da direita, nada de exportável para o resto do país.
Nas eleições legislativas nacionais o resultado mais provável é a vitória da AD, seguida de perto pelo PS e, não tão longe como todos os partidos tradicionais desejariam, do Chega. O resto são trocados, a dividir pela IL, o Bloco, o PCP e as outras formações, esquecem-me agora os nomes.
Sabe-se (e é mesmo ponto de honra) que a AD vai governar em minoria porque o Chega é dito infrequentável por ser fascista para uns, reaccionário para outros, escasso em quadros respeitáveis e conhecidos, e unipessoal de Ventura. Ademais, o programa já conhecido tem objectivos perigosos (como a concessão às forças de segurança do direito à greve), vários retrógrados como agravamento de molduras penais e criação de crimes novos, inconsistentes como um gigantesco brinde aos reformados com pensões abaixo do salário mínimo sem que se explique convincentemente de onde vêm as receitas necessárias, e até cómicos como “combater a zoofilia e fazer um diagnóstico desta prática em Portugal” (medida 351) ou reconhecer na Constituição os direitos dos animais.
Esta estratégia assenta num gambito: o de que se o Chega se aliar à esquerda para fazer cair o Governo pagará eleitoralmente por isso um pesado preço. Se há coisa que o eleitorado português já ensinou aos que o pastoreiam é que aprecia estabilidade; e desgramando militantemente quem está nem por isso vê com bons olhos golpes parlamentares.
De modo que governar será possível, ao menos até que as sondagens mostrem uma substancial alteração da relação de forças. Mas governar como? Moções de confiança e rejeição, ou a aprovação do Orçamento, são uma coisa; e legislação reformista outra.
E aqui começamos a ter a burra nas couves. Porque todas as reformas necessárias ferem interesses. Sucede que o Chega é o partido dos descontentes, dos desencantados e dos ofendidos pela engenharia social woke da esquerda a que a direita fecha os olhos; e a sua inconsistência consiste sobretudo em cavalgar todas as reivindicações que implicam mais despesa pública, ao mesmo tempo que diz querer reformar o Estado e não aumentar impostos. Acaso alguém acredita que, livre de peias, deixará de patrocinar novas levas de prejudicados por iniciativas legislativas que alterem o status quo económico e de exercer pressão para derramar recursos para todos os grupos reivindicativos, se suficientemente numerosos?
Jogo do gato e do rato é o que teremos, pela razão comezinha de que estar no poder, e governar, não são uma e a mesma coisa.
Não adianta pôr culpas no eleitorado, que não faz escolhas claras e pelo contrário se tem vindo a fraccionar – é uma tendência parece que generalizada e são os partidos que têm de se adaptar e não o contrário. Expliquei cabalmente, creio, em artigo neste jornal, por que razão a demonização do Chega não o enfraquece, antes fortalece.
Acrescento que em 2015 a manobra de Costa de lançar às malvas a cerca sanitária em torno do PCP e do BE não tinha mais intenção do que salvar o seu canastro político, mas teve o resultado positivo de reduzir aquelas duas formações à condição de parentes pobres do PS, o que será o menos, mas a consequência prática de que a direita, para regressar em força, teria de se unir – o que é o mais.
Se o número de mandatos de deputado traduzisse fielmente a importância relativa da votação do total nacional em cada partido as coligações pré-eleitorais pouco sentido fariam. Mas com o método de Hondt, como é sabido, fazem.
Não foi assim que aconteceu. E nem sequer se sabe se seria possível fazer uma plataforma programática comum porque o assunto não foi aventado, e menos discutido. É bem possível que não fosse viável – Ventura sabe bem que enquanto estiver fora cresce, mas dentro esmorece. O eleitorado, esse, qualquer que fosse o resultado das negociações, apreenderia sobre o Chega alguma coisa das que ignora.
Isto interessa agora? Nem por isso, salvo porque o problema não vai desaparecer e não é provável que o próximo governo cumpra uma legislatura.
Resta a dúvida, então: como deve votar quem não for socialista? Ofereço o meu caso, não porque em si tenha o mais remoto interesse, mas porque deve ser comum. No Votómetro do Observador deu-me à cabeça a IL, seguida da AD e, a uma distância de 11 pontos do primeiro, o Chega (o Livre ficou em último lugar, mas com a surpresa desagradável de não ser com 0% ─ ou o Votómetro está mal ou estou eu, nem vou ver em que pergunta é que coincido com a resposta deles, que é para não me incomodar).
A IL faz passar para a opinião pública, em matérias económicas, opiniões sensatas, que vão lentamente fazendo o seu caminho. Poderia, e deveria, fazer parte da AD, mas escolheu vincar a sua diferença porque acredita que, sozinha, vai crescer eleitoralmente. Ou seja, enfraquece a luta anti-PS em nome da sua identidade. Boa sorte lá com isso, mas com o meu voto não. Há um inimigo principal e outros secundários, o leninismo neste ponto é da maior utilidade.
O Chega tem algumas coisas boas: é claramente anti-esquerda e conservador nos costumes e nada, absolutamente nada na sua prática (a não ser as exaltações de um ou outro militante raro e exótico) e textos ilustra o risco do perfil anti-democrático que acefalamente lhe assacam. Em tudo o mais é uma manta de retalhos contraditórios, um revulsivo como a americanização das leis penais, a cavalo de um combate equivocado ao crime, outro uma mal-entendida luta anti-corrupção. Esta depende do intervencionismo e presença do Estado, incluindo autarquias, na economia e na vida das pessoas, bem como da eternização no Poder de um mesmo partido, e das nossas tradições, não do suposto par de asas nas costas que uns políticos teriam e outros não. Há ainda uma nebulosa de intenções generosas para satisfazer anseios de milhares de eleitores potenciais, nomeadamente os reformados, com base em recursos imaginários oriundos de “combates” contra isto e aquilo.
As putativas receitas a angariar por incursões justiceiras na economia paralela são um bom exemplo: Já hoje a AT dispõe de instrumentos que lhe permitem, na maior impunidade, exercer todo o tipo de exacções e atropelos aos direitos do contribuinte cumpridor, em nome da repressão à evasão fiscal. E não é decerto por acaso que as pendências nos tribunais administrativos e fiscais são recordistas nos atrasos – se fossem todas decididas num prazo razoável atirariam as “contas certas” ao ar. O grande impulsionador da economia paralela são os impostos altíssimos e o problema não pode ser moderado com recurso a reforço de poderes que já são excessivos.
A tributação extraordinária de lucros de bancos e petrolíferas, outro exemplo, é uma medida demagógica porque ou será paga com aumento de preços, portanto pelos clientes, ou impedirá processos de reforço de solidez financeira, o que aumenta o risco para os contribuintes em geral, ou implica choques com entidades estrangeiras, correndo o risco de a emenda ser pior do que o soneto. Isto para não falar da natureza dos impostos “extraordinários” – uma vez lançados passam a permanentes.
Tenho amigos que se vão abster por constatarem que o seu voto não aquece nem arrefece. Uma atitude vaidosa porque nenhum voto isolado, em eleições legislativas, decide coisa alguma, o que significa que se cada um reclamasse para si a importância que não tem a percentagem de abstencionistas seria de 100%. E outros não levam Ventura a sério mas votarão nele como protesto contra o esquerdismo que arrasta o país para a cauda do desenvolvimento. O motivo é bom, mas seria melhor se daquela lura pudesse sair algum coelho de crescimento ou de governabilidade.
Que resta, então? O leitor arguto já terá percebido, mas dou-me ao trabalho de explicitar o meu voto: AD.
Artigo publicado pelo Observador em 2024/02/13, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.