Fumar ou não fumar, eis a obstinação

Alfredo Vieira                                                                                                                                                        .

As narinas enjoadinhas, quais pináculos de cabecinhas intolerantes e autoritárias, nunca foram desígnio de companhia apetecível para qualquer fumador deste mundo.

Facto 1: os impostos/taxas sobre o tabaco representam, tudo confundido, cerca de 80% do seu valor final. Ou seja, num maço de 5€, 4 destinam-se a impostos e taxas diversas, directamente para os cofres do Estado.

Facto 2: existem estudos que demonstram que a exposição a quantidades importantes de fumo passivo pode provocar (sublinhando-se que falamos de risco, e não de um qualquer fatal determinismo) doença em não-fumadores (tal como, com muito maior risco, em fumadores).

Facto 3: esse risco de doença pelas acções de terceiros, atentatório da liberdade de quem não o quer assumir, justificou legitimamente restrições legais diversas. Ou seja, no respeito da liberdade de todos, não se pode admitir que uns, no uso da sua, atentem à de outros (neste caso: no seu desígnio de Saúde), e contra a sua vontade.

Isso justifica que certos espaços, onde não é lícito que se dupliquem circuitos (entre « fumadores » e « não-fumadores »), se proíba o fumo. Sou do tempo em que se fumava em todo o lado, e em que não-fumadores não tinham a possibilidade de optar por um ambiente livre de fumo. O que, à luz dos malefícios que entretanto se descobriram, é ilegítimo.

Claro que, a coberto dessa legítima justificação, se tomaram medidas excessivas e patéticas, nem que fosse pelo facto de em muitos casos se tratarem os não-fumadores como mentecaptos incapazes de conseguir escolher por si próprios locais devidamente livres de fumo, sempre que essa escolha existe. Ou seja: se é certo que numa consulta ou enfermaria de um Hospital público, nos corredores e numa sala de aulas de uma escola pública, numa repartição do Estado, em alguns transportes públicos (por exemplo autocarros), a restrição impõe-se, já na esmagadora maioria dos outros locais e estabelecimentos onde ela foi também imposta « a eito » (e onde a duplicação de circuitos era possível, ou a mera opção por querer ser um espaço privado « fumador » ou « não-fumador »), tal era absolutamente escusado. Desde que existisse opção de escolha. Mas pronto, parecia apenas a habitual trapalhice de governos socialistas e colectivistas, com a sua incorrigível mania de querer regular todo e qualquer detalhe do dia-a-dia dos indivíduos que « tutelam », sempre muito pouco crentes nas capacidades discriminatórias (entre o bem e o mal, o que convém e deixa de convir…) dos cretinos que julgam governar.

O que nos leva ao nefasto Facto 4: hoje em dia, o que se assume claramente, e curiosamente sem qualquer pingo de vergonha (porque a farsa já é « aceite »), é que se quer simplesmente restringir (ou até proibir) quem quer usufruir dos prazeres pessoais do tabaco inalado de o poder continuar (ou começar) a fazer. Porque diz que uma qualquer fugaz fragrância que tem o azar de se cruzar com um prepotente nariz mais intolerante « incomoda ». Porque diz que « dá mau exemplo », asseguram-nos uns invariavelmente tão enjoadinhos quanto enjoativos puritanos destes tempos modernos, sob as suas mais diversas (e insuportáveis) formas. Porque diz que reduz qualidade e tempo de vida, como se agora nem o tempo de vida de cada indivíduo adulto pudesse ser livremente colocado em risco pelo próprio, e à sua responsabilidade.

E o nefasto Facto 4, de inconcebível interferência com a liberdade individual dos fumadores (e onde estas já não interferem, de todo, com a Liberdade do desígnio de Saúde de outros), costuma-se justificar com um pseudo-facto fundamental: « custa (mais) caro à sociedade », em « doenças ligadas ao tabaco ». Isto é: que existe um « custo económico global » para toda a sociedade em nome de uma parte (os que fumam). O que seria, evidentemente, inaceitável.

Só que não, não sai mais caro, e esse argumento « económico » é hipócrita, falacioso e de má fé. Primeiro, os impostos pornográficos sobre o produto (facto 1) contribui para abater qualquer putativo custo acrescido do tratamento público dessas doenças. E digo « abater », já que os fumadores pagam todos os restantes impostos e taxas na mesmíssima proporção que os não[1]fumadores, e têm por isso o mesmíssimo direito à Saúde pública, com o bónus da tal extracção pornográfica suplementar que lhes é exclusivamente imposta.

Segundo, os estudos existentes falam sempre dos custos das doenças ligadas ao tabaco, e não têm quase nunca em conta um grupo controlo com a doença alternativa ilusoriamente baratucha que acabará por levar, mais tarde ou mais cedo, os não-fumadores à cova. Isto é: quando não se morre de « doença ligada ao tabaco », morre-se em geral (e até prova em contrário) de outra doença qualquer, e que em geral não é « de borla ». Dito ainda de outra forma: claro que as doenças ligadas ao fumo custam dinheiro em cuidados de Saúde. Mas as doenças de todos aqueles que não fumam também custam, e não necessariamente menos!

Terceiro, se em média os fumadores vivem menos 10 anos (mais coisa, menos coisa) que os não fumadores, e não se tratando em geral dos anos pré-reforma (dada a esperança de vida na actualidade), isso representa (em média) 10 anos de pensões a menos com cada fumador, bem como de custos diversos em comparticipações públicas (com por exemplo em medicamentos, com a soma de comorbilidades típicas da idade), em serviços públicos de Saúde (entre muitos outros: lares, etc…), e tudo isso numa população quase exclusivamente « não-produtiva ». O que, obviamente, representa uma significativa poupança social (e que, quem sabe, até põe em causa o próprio fundamento do « facto 1 »).

Para recentrar um pouco as coisas, nesta altura do texto em que muitos já se terão despistado: não, isto não é uma apologia ao tabagismo. Sim, o tabaco faz mal à saúde, e isso deve fazer (e já faz) parte das campanhas informativas de uma Saúde Pública que se preze. Sim, as crianças devem ser afastadas (e já o são) do acesso a essa planta, e de contraírem o vício numa fase da vida em que a sua autonomia não é plena. E sim, a saúde de quem escolheu livremente não fumar deve ser (e já é, em excesso) salvaguardada.

Mas não, o tabagismo não deve ser proibido! Nenhuma dessas premissas retira habilitação ao indivíduo na sua liberdade de fumar, se assim o desejar! Quem quiser fumar deve poder fazê-lo livremente, sem proibições infantilizantes de « encarregados de educação » governamentais sempre férteis de imaginação para argumentos mal paridos. « Achar pontualmente e subjectivamente incómodo » uma determinada situação nunca foi critério para se proibir o que quer que fosse a um cidadão a favor de outro (ou nunca deveria ter sido). Fumar numa esplanada não atenta ao que quer que seja (e muito menos a « direitos ») de ninguém. Como fumar ao ar livre à porta de uma escola ou de um Hospital, ou até num espaço apropriado e designado para o efeito, seja onde for. Os não fumadores não são dodós que irão acorrer à auto-extinção precipitando-se, incautos, para o fumo, ou fá-lo-ão em consciência e assumindo essa (chamemos-lhe assim) responsabilidade, e acima de tudo: não devem nem podem ser tratados como tal!

O argumento do « peso económico » acrescido para a sociedade no seu todo é, simplesmente, falso! A verdade é, portanto, apenas uma nos dias de hoje: trata-se de uma questão de privação de liberdade dos fumadores.

Hoje é o tabaco, e a malta a quem o cheiro lhes é « desagradável » agradece (ou parece-lhe indiferente), mas o engraçado nestas derivas é que amanhã será algo que lhe é caro. A carne, as batatas fritas, a maionese, o sal, o vinho, a cerveja, os doces e açucares. O carro, as viagens de avião. A casa. Os quilos a mais, os quilómetros a pé a menos. Coisas que vai apetecer fazer (ou não fazer), mas que não vai ser mais possível, independentemente do facto de não afectar terceiros (ou de apenas « incomodar » uns poucos, ou até muitos).

Tudo coisas que, então sim, levarão os palermas, que hoje aplaudem as actuais restrições, a perceber que se trata (como se tratará) de um atentado inaceitável às suas liberdades individuais. Tal como se trata, já hoje, com o tabaco, e como activa ou passivamente concebem, sem perceber que amanhã será algo que lhes parecerá, também a eles, inconcebível.

Ora, como acontece sempre nestas coisas de cidadãos cada vez mais de segunda na exigência do respeito pelos seus direitos: será demasiado tarde. Será bem feita, mas demasiado tarde, já que o Princípio em si (de primazia da liberdade individual) terá sido bovinamente negligenciado, e deixado adulterar na sua base.

Por isso cresçam, chiça. Se não querem crescer, no mínimo deixem os adultos em paz. A fumar, se assim o quiserem. De preferência bem longe de todas as narinas enjoadinhas, quais pináculos de cabecinhas intolerantes e autoritárias, e que nunca foram desígnio de companhia apetecível para qualquer fumador deste mundo.

Mas livres, assumindo responsavelmente os riscos que bem entenderem, bem como as consequências que a cada qual dizem respeito!

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/05/16, integrado na coluna semanal da Oficina a Liberdade.

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