JMJ

José Meireles Graça                                                                                                                                                    .

A separação entre Igreja e Estado existe para garantir que ninguém é discriminado por causa da sua religião, não existe para fingir que Portugal não é um país tradicional e maioritariamente católico.

De pessoas que não são mata-frades nem têm qualquer militância anti Igreja católica li vários textos, por exemplo este de Carlos Guimarães Pinto, que não transcrevo porque é extenso, e que põe em dúvida, com bons argumentos, o retorno económico das JMJ.

Lembra que a mesma efeméride, quando realizada em Madrid, não custou quase nada ao erário público. E não diz expressamente, mas poderia dizer, que a Capital Europeia da Cultura, ou o Euro 2004, ou outros eventos internacionais como a Uébesâmit, são invariavelmente apresentados como grandes negócios que o país faz por causa do número de visitantes que atraem e porque projectam o país lá fora.

Este último argumento é poderoso porque os portugueses vivem desde há cerca de 200 anos com o complexo de inferioridade que resulta do relativo atraso do país e da tradição de exportar os seus cidadãos mais novos e ambiciosos, recentemente agravada porque a turba que in illo tempore fugia dos campos agora foge sobretudo dos salários ridículos em confronto com a formação entretanto granjeada – ou seja, o que dantes era um lucro líquido agora é um prejuízo pelo custo público do ensino que não se traduz em crescimento económico, bem como pela sangria de jovens. Bons desempenhos no futebol, como a Noruega não tem, personalidades exaltantes como Guterres, ouvido em todos os areópagos internacionais onde prega grandes desgraças se não se fizer o que ele diz que a ciência diz, que faltam aos suíços, o fado, que, juntamente com a culinária, ninguém tem, e a luz de Lisboa, que falta a Londres, são grandes consolos.

Há também quem não compreenda por que razão a celebração não tem lugar em Fátima, cuja razão de ser está ligada à Igreja Católica e à propagação da fé e que tem condições para acolher grandes massas de pessoas.

Diz-se que Marcelo terá sido decisivo não apenas para a escolha de Portugal mas da sua capital.

Que Marcelo seja, interna ou externamente, decisivo para alguma coisa choca com a importância e a consistência do homem, que são praticamente nulas. E isto mesmo que o seu catolicismo, na versão beija-mão, fascínio por alfaias do culto, missas e procissões, seja inegável. E, por outro lado, pode ser que condicionantes de índole hoteleira desaconselhassem Fátima – não sei.

O que sei é que as JMJ estão aí. E, surpreendentemente, despertam um clamor não por causa das razões referidas de Carlos Guimarães Pinto (essas também são invocadas, mas com evidente má-fé porque não o foram com a mesma veemência aquando de realizações, digamos assim, civis) porque o comentariado de esquerda tem um problema que diz que é apenas com a Igreja, mas que abrange a fé e traduz incómodo pelo sucesso junto dos jovens de uma mensagem que detesta.

Sucede que a Igreja Católica não é progressista – é contra o aborto e o casamento gay, ou o divórcio (senão em casos limitadíssimos), por exemplo. E certamente os jovens que abrilhantam as paradas do orgulho LGBT, ou os okupas, não são os mesmos que estes que chegaram.

Este papa, que é de extracção socialista pelo menos no que entende sobre a vida económica, ameniza um pouco as coisas; e agora que Costa, que é um santo civil, abençoou a efeméride, é provável que se esbatam os ladridos anticlericais.

Há sempre os die-hard, claro. E quem melhor do que a estimável Fernanda Câncio para listar o que incomoda o seu lado do espectro? Vejamos:

Atribui a Marcelo a convicção de que “o miguelismo se prolongou até ao estertor do salazarismo e que só o advento da democracia lhe pôs fim – mais ou menos, porque, como diz, ele ainda anda aí”. Ela, Fernanda, não anda longe de concordar com esta extraordinária tese. Tenho porém más notícias: Quem, por expiação dos seus pecados, fosse ler a gigantesca montanha de crónicas e discursos, ou ouvir declarações, do nosso antigo comentador e actual Presidente, encontraria todas as opiniões e o seu contrário, salvo a defesa do marxismo ou do jacobinismo. Que ele marxista não é, e jacobino também não. No resto tem dias.

Já eu não vou explicar por que razão o alegado miguelismo da direita actual não tem pés nem cabeça. Por mim, fico desconfortável com a objurgatória – que me achem fascista já me enche as medidas.

Depois atira-se a Moedas, que carregou, “como se o princípio de separação entre Estado e igrejas fosse facultativo, um enorme crucifixo para dentro da sede da autarquia”.

A sério? Não fazia ideia da compleição atlética daquele edil, mas não vejo que lhe fique mal. O que vejo é que a separação entre Igreja e Estado existe para garantir (art.º 41º da CRP) que ninguém é discriminado por causa da sua crença religiosa, não existe para o Estado fingir que Portugal não é um país tradicional e maioritariamente católico, nem para assegurar que a Igreja deve ser tratada pior do que inúmeras organizações laicas que promovem celebrações. É certo que a música que se ouve hoje nas igrejas, dizem-me, ofende a sacra clássica que a Igreja inspirou. Não creio todavia que seja isso que aflige Fernanda, que suspeito deve gostar de uns baladeiros acompanhados à viola a cantar com voz roufenha poemas progressistas de grande inspiração, ou drogados a arranhar guitarras eléctricas enquanto pulam desastradamente num palco – tudo subsidiado.

Finalmente, refere o recente escândalo dos abusos pedófilos, a monarquia absoluta papal, o espectáculo “ignominioso” e “chocante”, a manutenção da Concordata, a “gigantesca operação de propaganda religiosa” e a existência escandalosa de crucifixos nas escolas. Uf.

Por partes: Que os tais abusos causaram danos à Igreja (e sim, antes que me crucifiquem, sobretudo às vítimas) não se duvida. A própria, que não existiria há dois milénios se não tivesse instinto de sobrevivência, encontrará para isso os remédios. Quer isso dizer que deve ficar de luto, abstendo-se de promover a Fé? Diria que sim, se fosse anticatólico. Mas não sou, como muitos como eu, e por maioria de razão os que o são – Fernanda que tenha paciência. Cristã, se não for excessivo incómodo.

O papa é eleito, donde, se deve ser encarado como monarca, será visigótico. E os súbditos são de uma variedade particular: podem entrar e sair do reino sem saírem de suas casas, e pagar ou não pagar à Igreja conforme entendam. A menos que se queira defender que o Sumo Pontífice é um agente a soldo de uma potência estrangeira, caso em que podemos estar tranquilos porque as nossas Forças Armadas pouco terão a temer dos guardas suíços.

A suposta ignomínia deste conjunto de coisas traduz-se no seguinte: o mundo seria muito melhor se não houvesse Igreja ou, havendo, que se guardasse dentro dos templos. Ao vir descaradamente para a rua esfrega na cara dos ateus e dos agnósticos como eu a realidade das convicções religiosas da maioria das pessoas e a sua alegria com isso. Que são dignas de amistosa inveja, não de opróbrio.

A Concordata é um exercício de diplomacia, realismo e respeito por uma instituição axial na nossa história como Nação. E não impede ninguém de viver dentro da católica ou de outras denominações, ou ainda à margem.

Finalmente: Não fazia ideia que ainda havia crucifixos nas escolas, mas não vejo porque não deveria haver. Mantê-los não obriga a nada. Retirá-los compulsivamente ajudaria a uma guerra do tipo das que envenenaram a I República. Não acabou bem.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/08/04, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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