João Pires da Cruz .
O título é uma frase que resume textos escritos por profetas ou por roteiristas de filmes de cowboys, mas é algo que nos transmite mais que uma ameaça ou uma crença. É uma inevitabilidade do agregado humano.
Talvez por defeito profissional, nunca consegui entender a existência de qualquer coisa sem um porquê associado. Seja essa coisa a mecânica quântica, a economia ou a evolução das espécies. As coisas existem por uma razão, por causa de força(s) evolutiva(s) que, pela lógica, dão origem aos fenómenos que nós observamos. Isto não significa que não possamos viver pelo aproveitamento simples dos fenómenos observados. Por exemplo, ninguém sabe o porquê da mecânica quântica, nem porque é tão diferente da física que usamos para construir pontes, mas isso não impede de construirmos as máquinas com que está a ler este texto e que se baseia profundamente nela.
Como sou um físico que toda a vida trabalhou sobre fenómenos em que as partículas são seres humanos, tenho de ter a mesma atitude face aos fenómenos gerados por estes. Porque existe economia? Porque existe sociedade? E, o meu tema de hoje, porque existe justiça (visto como ordem jurídica)?
Por alguma razão, a evolução das espécies favoreceu alguns seres por viverem em sociedade, sejam eles formigas, lobos ou seres humanos. E estas sociedades são todas regidas por leis/regras, hierarquias e diferentes papeis para que os comportamentos sociais se constituam como vantagens competitivas na máquina da seleção natural. A liderança das matilhas de lobos faz-se sem regras administrativas ou polícias, mas, no entanto, as regras são fundamentais para que a matilha sobreviva e todos os lobos sabem naturalmente o seu papel no dia-a-dia da matilha. Por isso, existam os desafios à liderança que existirem, no fim o cumprimento das regras será servido.
Estas regras biológicas, no caso do ser humano, são algo conflituantes com a existência de uma economia, um sistema de trocas que é otimizado com a liberdade do indivíduo, mas o nosso instinto social está cá. A existência de um instinto económico que faz o nosso indivíduo fugir às regras coletivas será sempre corrigido das regras que fazem o sucesso das sociedades humanas. Até podemos achar que não temos nada a ver com lobos, que vivemos uma sociedade livre e protetora do indivíduo, mas esta só existe após a satisfação das regras de sobrevivência. Nenhuma economia consegue sobreviver sem as regras sociais estarem servidas. Podemos achar que se fizermos regras diferentes, ou se não as fizermos de todo, vamos viver alegremente na mesma, acima daquilo que a evolução das espécies cravou no nosso comportamento, mas isso é mentira.
Boaventura de Sousa Santos, antes de se dedicar à pseudociência, fez um trabalho admirável na observação da emergência de uma ordem jurídica própria nas favelas do Rio de Janeiro, onde a ordem jurídica brasileira não penetrava. Sendo a justiça uma necessidade da sociedade, do agregado humano, ela vai emergir naturalmente, mesmo onde teoricamente falharia. Em Física chamamos “emergência” a estes fenómenos que não se observam nas partículas, mas aparecem quando aquelas começam a interagir. “Será servida”, mesmo quando achamos que não existe.
Isto para dizer que podemos pensar a justiça, podemos pensar a ordem jurídica, da forma que entendermos. No fim, aquilo que é a justiça necessária para o funcionamento do agregado humano, essa será a servida, quer a tenhamos desenhado administrativamente assim ou não.
Estou a escrever este texto numa altura em que a sociedade de pessoas portuguesas “que é filha de alguém” começa a protestar com o ministério público porque as escutas feitas a outras pessoas “filhas de alguém” começam a ser disponibilizadas publicamente, inclusive a pessoas “de que nem se sabe de quem é filho”. Ora, isto em qualquer sociedade move muitas vontades e começa a falar-se de reformas na justiça.
Infelizmente, e já escrevi algumas vezes sobre isto, a sociedade decisora portuguesa tem as competências matemáticas de uma criança de 15 anos. O que significa que “reforma” significará a construção de mecanismos operacionais que impeçam a divulgação das escutas ou obriguem à sua destruição antes dessa possibilidade; ignorando aquilo que é a causa: servir justiça, se não pelos trâmites normais, então serve-se pelos trâmites anormais.
Por vezes questionamo-nos porque populações inteiras que podiam viver em democracia parecem preferir viver em regimes opressivos, mas se pensarmos que os regimes opressivos servem uma ordem jurídica e que a democracia é só uma forma de regime que facilita a vivência económica, percebe-se que a imposição e implementação de regras é algo muito mais forte, prioritário face a conceitos que tomamos como adquiridos e que enumeramos como direitos humanos inalienáveis. E quando as populações são confrontadas com a necessidade de justiça ou a necessidade da satisfação dos direitos humanos, a opção acaba por ser a primeira.
Porque existe a divulgação das escutas (de forma frequente), então? O pensamento lógico devia-nos levar a pensar que essa é a forma de servir justiça dentro dos constrangimentos existentes, até porque as regras impedem essa divulgação. Nessa lógica, vão sempre existir, ainda que estejamos a falar de uma óbvia violação dos direitos fundamentais dos escutados. E se as “reformas” vierem a limitar essa divulgação de qualquer forma sem eliminar a razão de base pelas quais elas surgem, então surgirá outra coisa qualquer que, provavelmente, será uma violação ainda maior dos direitos fundamentais. Que não tenha a menor dúvida matematicamente empobrecida sociedade decisora nacional, justiça será servida, quer reformem contra ela ou a favor.
Artigo publicado pelo Observador em 2024/07/04, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.