Alexandre Mota .
“O Estado é a grande ficção através da qual todos tentam viver à custa de todos os outros” Frédéric Bastiat
Passaram-se quase dois anos desde que escrevi no Observador um artigo sobre Javier Milei e, desde então, ainda reina a incredulidade na maioria da comunicação social dita de referência. Na altura, Javier Milei, o “louco” de cabelo rebelde, venceu o representante elegante do peronismo, Sergio Massa. Muitos se riram do penteado de Milei e do seu tom histérico; muitos desejaram (e continuam a desejar) o seu insucesso; poucos levaram a sério as suas ideias e determinação. O certo é que, hoje, a Argentina já não é o manicómio fiscal de outros tempos. Há uma luz de esperança cada vez mais forte.
O programa era simples e radical: cortar o Estado, equilibrando as contas, libertar os mercados, privatizar.
Dois anos de motosserra
Milei não perdeu tempo: Decreto 70/2023, Lei Ómnibus, Pacto de 25 de Maio. O “plan motosierra” traduziu-se em cortes de subsídios, redução da máquina pública, privatizações parciais e uma disciplina fiscal férrea. Resultado: superavit orçamental — sim, leram bem, gastar menos do que se arrecada, conceito mais revolucionário na Argentina do que abolir a monarquia em França no século XVIII.
A inflação começou a cair de forma visível: de taxas mensais que superavam os 25% no início de 2024, passou-se para valores de um dígito no final de 2025, uma descida que não se via há mais de 20 anos. Os credores internacionais, habituados ao calote e ao tango do “renegociar para nunca pagar”, voltaram a ouvir a palavra “confiança” em castelhano sem se rirem. O risco-país, que chegara a ultrapassar os 2.400 pontos, recuou para perto dos 1.300, e a Argentina regressou gradualmente ao radar de investidores estrangeiros. O choque inicial fez subir a pobreza para perto de 50%, mas em 2025, com a inflação em queda e a disciplina orçamental em marcha, a taxa voltou a recuar, ficando abaixo dos níveis pré Milei. Pela primeira vez em décadas, os salários reais registaram recuperação consistente e até setores tradicionalmente estagnados — como a indústria automóvel e o turismo — voltaram a dar sinais de vida. O superavit fiscal, que parecia um mito, traduziu-se em cerca de 0,5% do PIB positivo em meados de 2025, prova de que cortar na gordura estatal não era um sonho, mas uma possibilidade concreta.
A agricultura reagiu como sempre — quando a mão do Estado larga, o campo floresce. Em 2024, exportações agrícolas em soja, milho e carne contribuíram para aliviar os déficits regionais, enquanto o setor energético, em especial com os projetos em Vaca Muerta, voltou a atrair capitais estrangeiros que haviam recuado nos anos anteriores. Em termos globais, à contração inicial de 2024 (largamente esperada), seguiu-se uma recuperação. O PIB, depois de uma queda de –1,70 % em 2024 (já caíra 1.6% em 2023) deverá registar um vigoroso salto de 5.5% em 2025 -segundo estimativas do Banco Mundial. Pela primeira vez em décadas os argentinos puderam imaginar que o futuro não precisa ser uma continuação miserável do presente: com o crédito a ressurgir, a construção a retomar em Buenos Aires e o consumo a mostrar sinais de vida.
Mas… há sempre um mas.
O Congresso bloqueia, a justiça emperra, as províncias resistem. Até aqui, tudo normal: a casta nunca se entrega sem luta. Mas o mais corrosivo não veio dos adversários, veio de dentro.
O escândalo que estalou recentemente trouxe para o centro da arena Karina Milei, irmã do presidente e secretária-geral da Presidência. Não há gravações da sua voz — só escutas de terceiros, como Diego Spagnuolo, ex-chefe da Andis, mencionando “comissões” de 8% a serem repassadas a Karina e ao seu círculo. Indiciário, mas suficiente para levantar suspeitas devastadoras. E aqui a comparação é inevitável com o Caso Koldo em Espanha. Lá, há escutas diretas, com as vozes dos implicados — Koldo García, Ábalos, Cerdán — falando de milhões em contratos e favores. Provas primárias, fatais. Já no caso argentino, só ouvimos terceiros a citar Karina, o que dá margem para a defesa falar em “operação política” e manipulação judicial.
Mas eis o ponto fundamental: não é preciso ouvir Karina. Basta o rumor, basta a dúvida, para corroer a aura moral de um governo que se apresentou como o exorcista da corrupção. Quando a irmã do presidente entra em cena, o fantasma da “casta” ressurge, mais vivo do que nunca.
O impacto político foi imediato. Nas eleições recentes em Buenos Aires, a oposição ganhou fôlego, capitalizando o desgaste moral de Milei. E para conter a pressão social e política, o governo recalibrou a política orçamental, revertendo parcialmente os cortes e aumentando os gastos públicos — um sinal de pragmatismo forçado, mas também um risco: a tentação de trair o superavit conquistado em nome da sobrevivência política.
Conclusão: loucura corajosa ou tragédia repetida?
Em dois anos, Milei conseguiu o impensável: pôr as contas em ordem, baixar a inflação, iniciar a recuperação da confiança. Conseguiu ainda mais: demonstrar que o liberalismo miseano não é só biblioteca, mas prática possível. Contudo, a política não perdoa. O escândalo Karina — ainda que baseado em escutas de terceiros e não em provas diretas — já mancha o capital simbólico do governo.
Resta saber se Milei será lembrado, como eu desejo e espero, como o “louco” que resgatou a Argentina ou como mais um governante engolido pelo monstro que jurou destruir.
De qualquer forma, se algum dia tivesse de escolher entre o ar respeitável dum bem-pensante do extremo-centro e o cabelo desgrenhado de Milei, com a motosserra numa mão e Mises na outra, não teria dúvidas: prefiro mil vezes um despenteado com as ideias certas a um penteado impecável que nos arrasta, de sorriso sereno, para o abismo.
Post Scriptum
Realiza-se hoje (10/Outubro), no Porto — Palácio da Bolsa, Auditório António Calém (2.º andar), pelas 18:00h, a apresentação do livro Javier Milei – A Causa da Liberdade, da autoria de Philipp Bagus, editado pela Oficina da Liberdade em parceria com a Dom Quixote – Leya. A apresentação estará a cargo de André Azevedo Alves e Rafael Campos Pereira.
Apresentação semelhante terá lugar em Lisboa, na AIP — Sala dos Presidentes, no dia 21 de Outubro, pelas 18:00h, a cargo de Pedro Ferraz da Costa, José Manuel Fernandes e Fedderico Barttfeld.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/10/10, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
