José Meireles Graça .
A Constituição tem isto de bom: tantas liberdades, direitos, garantias e salvaguardas que o cidadão curioso, ou o constitucionalista encartado, lá encontram princípios e normas para defender quase tudo, o seu contrário e ainda um par de botas.
Claro que ninguém discute o direito à liberdade, excepto se o cidadão estiver em prisão preventiva muito para lá do prazo limite, caso em que o MP, ou o tribunal, dirão: estamos assoberbados e portanto com falta de vagar; o direito à vida vírgula, que uns dizem que ela começa com o nascimento, outros com a concepção e outros ainda em algum momento no intervalo; do direito à propriedade nem é bom falar, que 732 entidades públicas o comprimem ou anulam em nome de um interesse maior, que é o que “serviços” públicos, ou, no melhor dos casos, entidades políticas, assim definem; o direito à liberdade de expressão ahahah, qualquer um é livre de dizer o que quiser, salvo se algum grupo se sentir ofendido, caso em que do que estamos a falar é de crimes já existentes ou a caminho – racismo, misoginia, incitamento ao ódio e o mais de que se lembre o povo de esquerda; o direito à associação é pacífico: basta redigir os estatutos, celebrar a escritura e pagá-la se os fundadores dispuserem de fundos ali à mão; e o direito à participação na vida política apenas requer espinha dorsal um pouco flexível, capacidade para aturar discursos chatos e doses consideráveis de treta.
Não é pacífica, a Constituição, nem é possível que seja, por isso é que temos um Tribunal Constitucional. Do qual ninguém imagina que seja uma entidade etérea acima das paixões partidárias, antes tributária das inclinações políticas dos seus membros sempre que os assuntos tenham carregadas implicações ideológicas. (Um parêntesis aqui para esclarecer que se em vez de ao TC os assuntos desta natureza fossem levados ao STJ o resultado viria tingido da mesma carga ideológica mas opaca por não se saber para que lado dorme cada um dos senhores conselheiros).
O Chega quer, parece, a proibição de ocultação do rosto em espaços públicos, e na AR, ainda antes de o assunto ser discutido, já há vários deputados com tosse, incluindo o Presidente, além da Ordem dos Advogados e do Conselho Superior do MP, porque semelhante proposta infringe a Constituição no que toca ao direito à identidade pessoal e ao princípio da liberdade religiosa.
Adivinha-se portanto barafunda. E como todas estas excelências são juristas está-se daqui a ver que os argumentos que se vão esgrimir, de um lado e outro, são de natureza jurídica. E, fatal como o destino, um constitucionalista dirá que não senhor, os referidos direitos não são na realidade ofendidos, outro que são mas devem ser compaginados com outros que devem prevalecer, e um terceiro que a compaginação deve ser feita mas prevalecendo os últimos. A certo ponto alguém dirá que os preceitos da lei devem ser densificados, e todos ponderarão com gravidade que realmente o melhor é densificar. De modo que a muçulmana que se apresente em público pode perfeitamente usar um chador, se estiver de hijab tudo depende de ter ou não ter um caracol à vista, e a burca essa é que de modo nenhum, excepto se a senhora puxar o lenço para debaixo do nariz, caso em que o agente de autoridade já não sabe onde está com a cabeça e o cidadão natural ainda menos.
Porém, a questão não é jurídica mas civilizacional.
Na longa luta que conduziu no Ocidente ao estatuto de igualdade de direitos de que gozam as mulheres não faltaram aquelas, geralmente mais velhas, que achavam muito bem o status quo ante, e isto por uma questão de aceitação no respectivo meio visto que as reivindicações revolucionárias (p. ex. o direito de voto) eram sustentadas por uma minoria. Consentir que, em nome da identidade pessoal, se obriguem as mulheres a vestir de uma maneira que traduz (traduz sim, as opiniões em contrário são, neste ponto, apenas lero-lero) o facto de elas se resguardarem para que apenas os olhos dos pais, dos irmãos e do marido as possam contemplar – isto é, só aqueles homens – é uma cedência a um arranjo social de desigualdade entre os sexos que a Constituição (cá está ela, mete-se em tudo) não permite. E não estamos a falar de trajos que indiciam uma missão (como as freiras, que escolheram essa condição), nem muito menos de moda, a qual já experimentou tudo e pode em qualquer momento recomendar balandraus que as nossa namoradas, mulheres ou mães escolherão livremente usar ou não. Estamos a falar de trajos que dizem isto: somos inferiores. Ponto.
De identidade pessoal estamos conversados. A liberdade religiosa (que a Constituição consagra) parece ser um assunto mais espinhoso porque a proibição, diz-se, implica interditar um sinal exterior de uma determinada crença, por isso privilegiar as outras.
Porém, a igualdade religiosa que a Constituição consagra diz respeito à fé e ao exercício religioso nos lugares apropriados, não cobre manifestações religiosas obrigatórias para certos grupos sociais que impliquem contrariar princípios ordenadores da vida social. Essa porta aberta, acabaremos por ter tribunais a aplicar a sharia a questões do foro criminal e civil ao menos para quem invoque a condição de muçulmano, como já sucedeu no Reino Unido.
A Constituição não diz que somos um país cristão e não o faz precisamente porque isso implicaria que o Estado assumisse uma confissão religiosa. O que não é a mesma coisa que negar que Portugal é um país cristão, quer os Portugueses sejam católicos, protestantes, ateus ou agnósticos. A Constituição não diz, di-lo a História, nossa como do Ocidente.
Temos assim que a questão do traje não é uma questão de traje. E cabe perguntar por que razão é que, previsivelmente, a esquerda (talvez não toda, abro uma excepção benevolente e talvez ingénua para parte do PS) achará que a lei ofende a liberdade, a igualdade e mais isto e aquilo. É porque, em nome da igualdade, se inventou que as civilizações são todas iguais, não há superioridades nem inferioridades. Caso singular: A esquerda reclama o progresso das instituições mas ao mesmo tempo nega-o porque acha que o agora é igual ao antes, e quem está no antes, se mudar para agora, fica onde já estava.
É isso e também o interesse: venham estas cáfilas alienígenas que com os que cá estão não vamos demonstradamente a lado nenhum.
Restam aqueles próceres aflitos do PSD e doutras paragens. O que os move nesta questão? A meu ver são angústias jurídico-existenciais: quem não tem ideias claras sobre o mundo procura encontrar a verdade no articulado da lei. Talvez, se o senso lhes falha, possam pensar no seguinte: à força de se quererem distinguir do Chega, que é especialista em encontrar causas com futuro, estejam apenas a criar condições para que o Chega seja o presente.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/09/29, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
