Sampaio ressuscitado

José Meireles Graça                                                                                                                           .

O que é que tanto mudou desde então que aquele discurso [de Jorge Sampaio] hoje só pudesse ser proferido por Ventura?

Comecei recentemente a fazer umas quantas perguntas a uma IA que me recomendaram. Nada de complicado, é certo, mas o resultado foi mais do que satisfatório. À terceira vez queria saber onde estava o discurso de 2002 de Jorge Sampaio sobre imigração e ela (a inteligência, diria “ela” mesmo que o substantivo que designa a IA em questão não fosse feminino, tal foi a simpatia) disse com rodriguinhos que não tinha conhecimento de um discurso sobre imigração mas informou que os discursos estavam listados no site da presidência da República que tem como missão ser o tombo do que dizem e fazem os presidentes, de cujo endereço pôs o link.

Fui lá procurar e encontrei, entre muitas outras, referência a um discurso proferido na Câmara de Paris em 2002. O texto é que nicles, nem desse nem de nenhum.

Regressei à IA em questão informando-a do insucesso e ela sugeriu que escrevesse ao Arquivo pedindo o texto.

Fiz mais uma insistência reformulando a pergunta e, sempre sem perder a cordialidade, ela sugeriu um upgrade da minha inscrição, que custaria xis. Não lhe disse, mas pensei, que poderia inteirá-la da minha doença do foro dermatológico que faz com que o pedirem-me dinheiro imediatamente me cause comichão, e deixei-a até nunca mais.

Tudo isto porque vi no Facebook um vídeo de parte de um discurso em que aquele Presidente dizia sobre o assunto umas boas coisas de extrema-direita, sem que porém houvesse qualquer link, o que me fez desconfiar. Hoje não se pode acreditar seja no que for, até mesmo vídeos, porque pode ser fabricação. Logo, é preciso ir às fontes e, se se tratar de notícias que a comunicação social veicula e a coisa tiver implicações políticas, convém apurar ainda que fontes são essas. É a ONU, por exemplo, e o assunto a guerra Israel/Hamas? Então é provável que aquela desprestigiada organização se esteja a basear em dados fornecidos pelo Hamas porque reflecte acefalamente o ponto de vista da maioria dos países que dela fazem parte e de parte considerável da opinião pública nos países muçulmanos, por definição, e no Ocidente por uma quantidade de razões – que não vou tratar aqui porque esse não é o meu propósito.

Sucede que Rui Rio, que não tem a reputação de ser um troca-tintas, publicou no x o tal vídeo, manifestando a sua inteira concordância. Que disse então in lllo tempore Sampaio? Disse isto:

“[…] a nossa capacidade de integração dos imigrantes na comunidade política nacional. Devemos manter as portas abertas da nossa comunidade com moderação e dentro das regras legais que regulam a aquisição da nacionalidade, e portanto, dos direitos políticos próprios da cidadania. Também devemos exigir uma demonstração real da vontade de integração desse imigrantes na nossa comunidade nacional. A contrapartida da nossa abertura é a rejeição firme dos isolacionismos religiosos e culturais. Não podemos dar direitos políticos a minorias que recusam os nossos valores e não acatam as nossas leis. Queremos receber dignamente, isso sim, os cidadãos livres que escolheram partilhar o nosso destino coletivo e respeitar a nossa ordem jurídica”.

Claro, exaustivo e acertado. Manifesto também a minha inteira concordância e, retrospectivamente, ganhei um respeito acrescido pelo homem.

Sampaio era marcadamente de esquerda (foi fundador do MES e da Intervenção Socialista e secretário de Estado num governo de Vasco Gonçalves, tendo aderido ao PS em 1978 com quase 40 anos) e dele só se lembram, quem lembrar, o hábito de recomendar calma a quem não estava nervoso e a famosa frase que ficou na memória como tendo sido “Há mais vida para além do défice” mas que afinal teve na realidade uma formulação diferente significando praticamente o mesmo. O passo de maior relevo foi, porém, o despedimento do governo maioritário de Santana Lopes ao fim de menos de 5 meses de exercício, sob pretextos pueris.

Este despedimento, e a convocação de eleições, foram apresentados então e agora como tendo origem na suposta falta de gravitas de Santana, além de umas maravalhas que já ninguém recorda, e abriu caminho a Sócrates, o animal feroz que também era adepto de haver mais coisas para além do défice.

Pois bem: Este homem disse o que disse sobre a imigração em 2002, não causando qualquer comoção às suas hostes. E portanto cabe perguntar o que é que tanto mudou desde então que aquele discurso hoje só pudesse (com uma formulação mais deselegante, mas cada um é o que é) ser proferido por Ventura.

A minha resposta (bastante limitada, eu sei, suponho que haverá outros factores em jogo) é que havia então uma sólida maioria social de esquerda, no sentido de que os governos ditos de direita não almejavam mais do que o reforço da economia de mercado e o desmantelamento de alguns furúnculos (apenas alguns) herdados do PREC.

A esquerda começou então o seu pouco visível declínio, começando com os governos Sócrates, que a certo ponto declarou, com alguma razão, “sou o chefe democrático que a direita sempre quis ter“. E após o interregno Passos Coelho, que não andou longe de encarreirar o país numa direcção sã, vieram o PCP e o Bloco salvar o naufragado Costa, que realmente se salvou enquanto eles se afundaram de vez.

Em 2016 iniciou-se a enxurrada crescente de imigrantes. E estes começaram a ser, para a esquerda, a tábua de salvação. Preenchem os requisitos de uma bandeira de causas porque são pobres e, com frequência, explorados; são minorias, donde podem ser cativadas por quem as defenda; e satisfazem os requisitos da superioridade moral que é, na convicção das próprias, a marca distintiva das pessoas de esquerda – defender os de baixo contra os de cima, há lá coisa mais generosa e superior, e melhor ainda se no processo se ganhar a sobrevivência?

De modo que Sampaio não deve cessar de se contorcer na tumba. É o que eu digo: se a esperança média de vida estivesse nos 160 anos toda a gente era de direita.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/08/01, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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