Diogo Hoffbauer .
Existirão no mundo poucos fenómenos mais vexatórios do que a cobertura noticiosa portuguesa dos assuntos que ocupam a agenda política e cultural norte-americana. Como, por compromisso e ócio, são decalcados fielmente dos seus congéneres internacionais, e portanto já filtrados em conformidade pelos agenda setters, contêm em si o mesmo enquadramento dos demais – que, como qualquer pessoa com um pingo de atenção sabe, é um enquadramento profundamente desonesto e pró-oligarquia. A este já trapaceiro viés, junta-se uma atroz ignorância dos assuntos em causa e uma constrangedora infantilização do leitor e temos assim o cocktail perfeito de desinformação.
O caso de Jeffrey Epstein é, neste sentido, particularmente intrincado. Apesar das clamorosas evidências, o seu carácter eminentemente holiodesco, o melindre do tópico da pedofilia e o condicionamento para a subserviência levaram sempre a uma instintiva repulsão de qualquer referência ao caso para as franjas obscuras do submundo conspiracionista. Seria de esperar que, quando estão em casa milhares de menores que foram vítimas de inenarráveis abusos sexuais, houvesse um pouco mais de tento na defesa incondicional da oligarquia. Porque os factos, esses, são inamovíveis: durante décadas, Jeffrey Epstein – uma misteriosa figura, que ninguém sabe muito bem de onde surgiu (uma opacidade compatível com o padrão de espião estrangeiro), íntima da elite política e financeira mundial – traficou raparigas menores para serviços sexuais, utilizando a sua ilha privada, a ilha Little St. James, nas Ilhas Virgens Americanas, como centro de operações e horrores, numa colossal e mediática rede de pedofilia. Segundo o testemunho de inúmeras vítimas (algumas entretanto “suicidadas”, como ainda este ano Virginia Roberts, que provavelmente tomou a decisão de se matar por se sentir tão culpada por ter mentido sobre os pobres injustiçados), os frequentadores assíduos da ilha seriam indivíduos da mais alta roda da política, do entretenimento e da finança, entre o quais o Principe André, Bill Gates, Bill Clinton e – entre muitos outros – até o antigo primeiro-ministro do país do Médio Oriente que não pode ser referido, Ehud Barak, tinha estreitas ligações com Epstein sem que estas alguma vez tenham sido explicadas.
Sabe-se disto há anos; e há anos que – na ausência de uma credível investigação pela justiça americana e pelo megafone do poder ao qual chamamos comunicação social, que só acordou agora para o caso porque começaram a salivar por ter Trump no olho do furacão – esse reduto de liberdade indomável chamado internet exige a divulgação da lista dos clientes do perverso negócio de tráfico e extorsão de Epstein. Há umas semanas, um tuíte-bomba de Elon Musk – na sequência do término da relação com o presidente, numa atitude típica de ex-namorada condoída – voltou a fazer o caso vir à tona: Trump não divulgará a lista de clientes de Epstein, como prometeu fazer, porque ele é um deles. Nada que choque quem sempre acompanhou o caso: a proximidade de Trump e Epstein nunca foi propriamente guardada em segredo, apesar das promessas do actual presidente em escarafunchar a ferida.
Agora, depois de meses e meses de promessas e provocações, fomos informados pelo Departamento de Justiça americano e pelo FBI de que afinal…Epstein não tinha clientes. Não existem. A mais mediática rede de tráfico humano do século, afinal de contas, não traficava para ninguém. Ninguém andou a sofrer chantagem de Epstein – muito menos políticos, muito menos americanos, muito menos daquele país que não pode ser mencionado e ao qual Trump presta embaraçosa vassalagem. Ah, e Epstein matou-se mesmo. Suícidio, evidentemente. Apesar de ter sido posto em vigília de suicídio, as câmaras falharam e os guardas adormeceram. Nós é que somos malucos por unir os pontos e fazer perguntas.
Ao entrar neste negacionismo repentino, Trump mergulha de cabeça numa areia movediça, porventura até mais pela forma do que pelo conteúdo. O modo como, numa pirueta digna de ginástica olímpica, tem procurado varrer este caso para debaixo do tapete tem sido absolutamente caricatural, como o personagem dos desenhos animados que quando quer mentir gagueja, desaperta o colarinho e começa a suar.
Alegou que quem insiste na divulgação dos ficheiros Epstein são “más pessoas”. Chamou ao caso “aborrecido” – algo que, qualquer que seja a perspectiva, um ringue de tráfico humano nas altas instâncias da sociedade dificilmente será. As contradições são patentes: já nos disseram que a lista existe (Pam Bondi, procuradora-geral, disse inclusivamente que a tinha… na sua secretária), que será divulgada, que existe mas é falsa e agora… que afinal não há lista nenhuma.
Naturalmente que estas incoerências e o comportamento teatral do POTUS adensam ainda mais a já justificada desconfiança. Trump oficializa, assim, o que era para muitos já óbvio, apesar da sua retórica: ele faz parte da elite que procura esconder do público as informações sobre este caso que comprometam os sagrados membros da oligarquia. Mais importante do que concluir daqui que Trump estará também comprometido, é constatarmos que os monstros por detrás de tudo isto são muito mais poderosos do que o próprio governo americano.
Apesar de boa parte do movimento MAGA estar assente numa espécie de culto de personalidade, o combustível do mesmo sempre foram as causas que o alicerçavam. O que o suporta não é o que ele é, mas o que ele representa. Em grande medida, sempre foi até apesar de Trump e não graças a ele. No contexto da sua política “drain the swamp”, a transparência no caso Epstein foi uma relevante bandeira – não só pela natural revolta que os seus detalhes despoletam, mas como símbolo da impunidade grotesca da nobiliarquia. Ao juntar-se ao coro que apela a sua relativização e olvido, Trump dá uma chapada na cara das suas bases – uma chapada que se junta a uma não menos relevante investida bélica também contraditória das suas palavras pré-eleitorais e até da sua postura no primeiro mandato.
E, apesar da irredutibilidade de muitos seguidores, a traição das bandeiras sairá sempre caro – sobretudo quando estão em causa milhares de vítimas, quer das guerras, quer dos abusos sexuais perpetrados por poderosos indivíduos que continuam à solta. Mesmo que a História tenha desfeito definitivamente essa ilusão, ainda é ela que suporta o nosso acordo social: não é suposto nós sermos leais a políticos, é suposto eles serem-nos leais. Traída essa lealdade, só resta o cadafalso (vamos dizer metafórico, para afastar lamúrios). Há muitas coisas mais importantes do que as miudezas do confronto político, do maniqueísmo supérfluo e da fidelidade a determinados suseranos. E se o encobrimento de pedófilos não é uma delas, está na altura de verificar prioridades e pensar no que se está realmente a apoiar.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/07/26, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.