Vai ficar tudo bem

Ricardo Dias de Sousa                                                                .

Não sei se acabar com a carnificina de jovens é a prioridade de Trump para querer um acordo de paz, mas é o argumento a que os líderes europeus se deveriam agarrar como justificação para o apoiar.

O assunto do momento é a “cilada” do malvado Trump ao pobre Zelensky na Sala Oval. Escrevo “cilada” entre aspas porque, como tal, nunca existiu. Isto é algo que qualquer pessoa com conhecimentos básicos de inglês poderia facilmente deduzir, ou dificilmente suspeitar, se observasse na íntegra os 50 minutos que durou a reunião. Esse não é, no entanto, o motivo deste artigo. As consequências do encontro seriam as mesmas com ou sem cilada. Mas, serve esta introdução para chamar a atenção para uma situação recorrente. A inabilidade da generalidade dos meios de comunicação para transmitir informações minimizando os juízos de valor, grande parte deles preconcebidos. O serviço que os meios de comunicação deviam prestar, a sua missão por assim dizer, é intermediar entre os factos observados e o receptor, fazendo-lhe chegar aquilo que é mais relevante para que este forme uma opinião. Por esse motivo se lhes chama media. Numa era em que aos receptores lhes é possível, com um pouco de trabalho, ir diretamente à fonte, é compreensível que o jornalismo esteja em crise, mas não é que não esteja a cumprir a sua função. Ou se calhar a sua função é outra, a de fazer propaganda, ou click bait.

Como este não é o assunto principal, mas não quero que fique no ar, deixo aqui um artigo escrito por Rachel Bade no site Politico (Zelenskyy Forgot the First Rule of Dealing With Trump), para quem queira perceber melhor o sucedido na Sala Oval. Escolho este por motivos óbvios: Bade não é, nem de perto nem de longe, admiradora de Trump. Escreveu um livro onde acusa os políticos em Washington, tanto democratas como republicanos, de deixar Trump escapar a um impeachment que, para ela, era mais que merecido. Adicionalmente, o site Politico, onde o artigo foi publicado, foi recentemente acusado pelo pela Administração Trump de ser um receptor encoberto de fundos públicos para fazer propaganda para o Partido Democrata. Rachel Bade e o Politco estão acima de qualquer suspeita de querer agradar a Trump. Nesse caso, porque é que Bade afirma que não houve uma cilada? Porque ao contrário da maioria dos especialistas e comentadores, ela falou com as fontes, com as pessoas presentes na reunião, e estas disseram o óbvio para quem viu os 50 minutos: que o staff da Casa Branca trabalhou 5 dias naquele acordo e a preparar aquela reunião e foi Zelensky quem saiu do guião. Se fez bem ou mal, cada um que julgue por si, mas o que não aconteceu em nenhum momento foi uma “cilada” premeditada de dois gorilas.

Em minha opinião, muita desta preocupação com as más-formas serviu para evitar falar no conteúdo da conferência que é o que verdadeiramente importa. O que se passou em frente às câmaras é algo que sucede muitas vezes à porta fechada. Foi uma vergonha? A quem lhe importa? Assim pudemos perceber grande parte do que está em jogo. Quantas vezes foi dada ao público essa oportunidade? Criticar as formas é dizer às pessoas: vocês não tinham o direito de ver isto. Eu percebo que a diplomacia muitas vezes peça descrição e tacto, mas a ninguém se lhe pode negar saber em primeira mão sobre um assunto desta importância pelo motivo que seja, bronca diplomática incluída.

Nestes três anos, nas minhas colaborações ocasionais com a coluna da Oficina da Liberdade Observador, só por duas vezes toquei no tema da Guerra da Ucrânia. Há demasiados especialistas no assunto com preferências mal disfarçadas e numa guerra a verdade é sempre a primeira vítima. Das duas vezes fi-lo para dizer coisas que não tinha visto escritas como eu as percebo e que me pareceram suficientemente factuais para ter alguma segurança no que afirmava quando as abordei. O primeiro artigo (Toda a gente tem um plano?), logo uma semana depois da invasão, quando a Europa em peso apoiou a Ucrânia e os líderes europeus decidiram, a contragosto, submeter a Rússia a sanções económicas (e mais tarde enviar apoio militar), chamei a atenção para o facto de a Europa não ter um plano e estar dependente de uns Estados Unidos com cada vez menos interesse em agradar à Europa (e com bastante interesse em ter uma boa relação com a Rússia). Na minha opinião não é Trump quem está a revolucionar a política externa americana, foi Biden quem fez marcha atrás numa tendência que já era clara. E foi isso o que escrevi. Muito a meu pesar, não havia muito que a Europa pudesse fazer pela Ucrânia pelo que entrar de forma aberta no conflito para agradar à opinião pública era, no mínimo mal concebido, provavelmente néscio e, no limite, desmiolado.

Porque três anos depois se verifica que assim foi, o que devia indignar os europeus não é a forma como Trump e Vance trataram Zelinsky, mas o facto de a Europa continuar a não ter um plano. As manifestações de solidariedade ao presidente ucraniano, as críticas ao enxovalho e as reuniões de urgência para fazer em três dias o que não se fez em três anos, como era de esperar, não deram em nada que contribua para resolver a situação. Ao mesmo tempo que deixavam mensagens nas redes sociais a criticar o Executivo americano em público, em privado os líderes europeus aconselhavam Zelinsky a fazer as pazes (e assinar o acordo). Para ser totalmente claro, eu não saberia dizer o que é que os Europeus poderiam ter feito durante estes três anos, excepto estreitar laços com os americanos através da NATO, fazendo tudo o possível para não pôr em causa a sobrevivência da única Aliança militar que pode fazer alguma coisa pela Europa em caso de ameaça real (algo que a Rússia ainda não é). Dito de outra forma, se era difícil no longo prazo antever as consequências de um alargamento a Leste, a admissão de Suécia e Finlândia, que por motivos bastante específicos não fizeram parte da Aliança durante mais de 70 anos, em pleno conflito aumenta a responsabilidade dos Estados Unidos de ter que intervir e, consequentemente, o potencial custo. A ideia de um exército comum europeu para substituir a NATO, que faz salivar os burocratas em Bruxelas, é totalmente impraticável. Metade da dissuasão nuclear (e provavelmente a parte mais competente desse putativo exército) encontra-se fora da União Europeia, nas ilhas britânicas, e a generalidade dos países europeus desconfiam da prudência de entregar os seus recursos à outra metade, a França, que há décadas desvia a maior fatia dos recursos comuns através da PAC e teria no exército comum carta livre para fazer mais do mesmo.

Esta inabilidade, em grande parte por impotência, para fazer alguma coisa sem o apoio norte-americano leva-nos ao segundo texto que escrevi sobre o assunto, logo em Setembro do mesmo ano, depois da ofensiva ucraniana que recuperou uma grande parte do terreno ocupado. Nesse artigo, intitulado “A guerra da Ucrânia já acabou, a guerra na Ucrânia não” defendi que era o momento de começar a negociar a paz e assumir que a Rússia ia ficar com uns territórios onde até era bastante plausível que a grande maioria da população quisesse ser russa. Os falcões dos teclados, defensores do bem absoluto do invadido contra o invasor, esquecem ou nunca souberam que a grande maioria das guerras não acaba com a rendição incondicional de um dos exércitos, mas com um acordo de paz que não satisfaz plenamente nenhum deles, mas que é melhor do que continuar a guerra para ambos.

Três anos depois, a linha da frente continua (mais metro, menos metro) no mesmo sítio, pelo que ao que assistimos neste triénio foi ao sacrifício sem sentido de milhares de vidas. Não sei se acabar com a carnificina de milhares de jovens ucranianos e russos está no topo das prioridades de Donald Trump para querer um acordo de paz, mas é o argumento a que todos os líderes europeus se deveriam agarrar como justificação para o apoiar. Porque se perguntarmos qual foi o objetivo destes três anos de stalemate, como diriam os especialistas nestas coisas, ou empate como diria uma pessoa normal, com enormes custos económicos e em vidas humanas, julgo que nenhum líder ocidental saberia responder mais além de um vago: para ver se havia uma mudança de regime ou um colapso económico na Rússia, mas sem grandes esperanças de que tal tivesse acontecido. Mas se Trump, que chega como novo comandante-em-chefe, pergunta ao seu Estado-Maior qual é o objectivo da guerra e o que é que foi conseguido na Ucrânia? E, possuindo a informação fidedigna que estes lhe transmitiram (inteligência para os especialistas), decide que é o momento de acabar com o circo dos horrores, quem é que o pode sinceramente censurar? Ou alguém julga que quando o Vance perguntou a Zelensky se estava a ter problemas para recrutar soldados frescos, não sabia a resposta? Ou quando Trump lhe disse que não tinha cartas, desconhece a mão que o presidente ucraniano segura?

No entretanto, a União Europeia parece querer continuar a jogar aos soldadinhos. A Alemanha anunciou que vai aumentar em 500 biliões de euros o gasto militar. Dinheiro que não tem, pelo que as taxas de juro da dívida alemã dispararam no mercado secundário logo que isto foi anunciado. Neste aumento reside outro erro, o de julgar que basta aumentar o gasto para resolver o problema. O dinheiro ajuda, pode comprar mais e melhor material se o houver disponível, e erguer novas fábricas para o produzir se não existe o suficiente. O dinheiro também permite investir no desenvolvimento de armas mais eficazes, ainda que neste caso não existem garantias de êxito ou fórmulas que o possam prever à priori. Ainda que, com a economia em quase pleno emprego, a única forma de conseguir gente para trabalhar no sector da defensa é retirando a outros ou atraindo técnicos qualificados do resto do continente, que vão deixar de estar disponíveis para os outros países. E se falta gente para a indústria, mais gente falta para fazer um exército.

A Europa está muito longe de conseguir jovens dispostos a lutar em quantidade suficiente para as trincheiras. O suicídio demográfico é grande parte do problema, a substituição dos jovens que não nasceram por jovens filhos de estrangeiros que, excepto no futebol, nunca foram incentivados a querer pertencer ao país que acolheu os seus pais é outra parte desta falta de efectivos crónica. Em caso de conflito com a Rússia, onde é que a Europa vai encontrar três a quatro milhões de jovens para defender uma linha da frente de mais de 2000 km entre Talin e Odessa? Se no conflito actual, bastante mais limitado no espaço, por detrás de toda a retórica, os governos europeus fecharam os olhos à compra de petróleo russo através das antigas repúblicas para que os seus cidadãos não passassem frio no Inverno. Esperam que uma população que não está habituada a passar frio vá mandar os seus filhos morrer em trincheiras geladas na Frente Oriental?

Durante três anos, em vez de tentar chegar a um acordo de paz, os dirigentes europeus preferiram manter uma retórica bélica, dependente da vontade dos EUA continuarem na guerra, sacrificando os recursos dos cidadãos europeus para comprar material de guerra para a Ucrânia ao mesmo tempo que pagavam aos russos para que pudessem fazer o mesmo. Durante três anos ouvimos os mesmos slogans ocos dos tempos da COVID quando os nossos governantes fingiam que podiam fazer alguma coisa para extinguir um vírus respiratório. Agora que insinuam o regresso do serviço militar obrigatório, estaria bem colocar nos cartazes a chamar a rapaziada aos quartéis em letras garrafais “Vai ficar tudo bem”.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/03/07, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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