Ricardo Dias de Sousa .
No passado dia 13 de Agosto, a Argentina foi assolada por um terremoto político. Um que atende pelo nome de Javier Milei, o surpreendente vencedor das Eleições Primárias Obrigatórias que tiveram lugar naquele país. No sistema eleitoral argentino, a corrida à Presidência da República passa pela celebração de pelo menos dois, e possivelmente três, actos eleitorais. Este primeiro foi, ao bom estilo americano, eleições primárias que servem para escolher o candidato de cada partido. Só que, ao contrário dos Estados Unidos, estas não são organizadas separada e independentemente por cada um dos partidos, mas em comum pelo estado e para todos os partidos em simultâneo. Na Argentina, cada partido ou, o que é mais comum, cada coligação pode apresentar vários candidatos apurando-se o mais votado de cada uma à segunda etapa: a eleição presidencial propriamente dita. Como curiosidade, a terceira etapa, caso seja necessária, é a segunda volta entre os dois candidatos mais votados, no caso de nenhum dos candidatos obter maioria absoluta na primeira volta.
Tivemos assim, e para simplificar, que no passado dia 13 de Agosto, os três principais candidatos, um por bloco partidário, foram apurados para a corrida presidencial. À esquerda, na coligação Unión por la Patria, ganhou Sergio Massa, do Frente Renovador (a excisão mais ao centro do Partido Justicionalista ou Peronista). À direita na coligação Juntos por el Cambio, ganhou Patricia Bullrich, do partido Propuesta Republicana (a plataforma transformada em partido que, em 2015, elegeu Mauricio Macri). O terceiro bloco, chamado La Libertad Avanza, a julgar pelas palavras empregues pela imprensa em geral, seria o da ultra-alt-extrema-paleo direita, onde se sagrou vencedor Javier Milei do Partido Libertario que, ao contrário dos outros dois, concorria sozinho.
Esta breve explicação não faz juz ao estatuto de terremoto político empregue no primeiro parágrafo. Afinal de contas, Javier Milei ganhou uma eleição em que concorreu sozinho para liderar a candidatura da sua coligação. Não tão rápido. As eleições primárias são obrigatórias, o que significa que, com poucas excepções, todos os argentinos maiores de 16 anos votaram, e cada um deles votou num só candidato de um só partido. Com 30% dos votos, Javier Millei foi o candidato mais votado por todos os argentinos. Além disso, a sua coligação foi a que recebeu mais votos. Quer dizer, não foi só Milei quem teve mais votos que Massa e Bullrich, segundo e terceiro respectivamente. A coligação LLA também foi a mais votada, à frente de todos os candidatos de JxC e UP. Para maior assombro, apesar de o candidato peronista ter sido o segundo mais votado, a coligação de esquerda ficou em terceiro lugar nas preferências de votos dos argentinos. Um terremoto político num país onde, exceptuando a Ditadura Militar, o Peronismo governou quase ininterruptamente desde 1946.
Trinta por cento dos votos não serão suficientes para ser presidente da Argentina se os outros dois partidos, previsivelmente, se apoiarem mutuamente numa segunda volta. Sendo que, de momento, parece que vão ser os peronistas os que têm que engolir esse sapo. Mas, o facto de um terço dos argentinos votarem no candidato anti-sistema é uma demonstração clara da falência do Estado argentino, tanto na versão de esquerda do Socialismo do Séc. XXI, como na da direita, supostamente reformadora, que se mostrou incapaz de fazer frente ao desgoverno da res publica que empobreceu, e continua a empobrecer, o povo argentino.
Se viene el estallido
Se viene el estallido
De mi guitarra, de tu gobierno, también
A natural propensão dos meios de comunicação em empurrar para a ultradireita este e outros partidos em franca expansão no Ocidente tem como único propósito disfarçar a falência da social-democracia, mais na sua parte social que na democrática. Esta última continua, apesar de tudo, a funcionar. Só que o papão do fascismo tem cada vez menor efeito porque o Estado do Bem-Estar é cada vez mais caro de manter. Com a agravante de, em países como a Argentina, a aquilo que se está a tentar manter é uma total ilusão. Um Estado que entrega produtos e serviços de cada vez menor qualidade, quando não inexistentes, sem reduzir o preço da factura. Pelo contrário, onde o custo vai sempre em aumento. Estes países vão inevitavelmente colapsar, independentemente de àquilo que finalmente provoque o seu colapso se poder chamar extrema-esquerda ou ultradireita. No caso da Argentina, o colapso até já sucedeu há duas décadas, com o chamado corralito. Por esse então, os argentinos puseram maioritariamente a sua esperança na extrema-esquerda de Néstor e Cristina Kirchner. Quando o Kirchnerismo fracassou, tentaram a solução Macri, que foi uma espécie de reforma sem reformar nada, e que acabou com o regresso do Peronismo de Alberto Fernández, essencialmente inútil mas não inócuo.
Javier Milei considera-se um libertário, isto é, um anarquista que deposita a sua fé na ordem espontânea dos mercados. É por isso que quando o acusam de ser de extrema-direita, ele responde que essa é a forma que os jornalistas têm de caracterizar aquilo que não entendem, que muitas das coisas que ele defende foram outrora defendidas pela esquerda. Os libertários são, em muitos aspectos, os herdeiros do Liberalismo do séc. XIX que, ao encontrar a palavra “liberal” sequestrada pelos defensores do intervencionismo estatal, em particular nos países anglo-saxónicos, cunharam uma nova palavra para eles próprios. Dentro do que quer Milei: defender a liberdade de os indivíduos comerciarem livremente entre si sem interferências nem protecionismos estatais foi, durante o séc. XIX uma ideia de esquerda. E mesmo proteger a vida intra-uterina (Milei é radicalmente anti-aborto) também o foi, e até há bem menos tempo. O Partido Democrata só alterou oficialmente a sua posição em relação ao aborto em 1976, tendo o Partido Republicano feito o mesmo, na outra direcção, pouco depois, a partir dos anos 80.
Esquerda e direita não passam de conceitos relacionais, sem nada de substancialmente perene que os possa definir. Têm mais utilidade pragmática que conceptual e é um erro tentar percebe-los de outra forma. Quando Salazar foi sondado por Carmona para constituir o seu primeiro governo, o seu Chefe de Gabinete, Leal Marques, decidiu escrever um diário daqueles tempos turbulentos que se manteve em segredo durante várias décadas. A principal oposição a um governo do Salazar dentro da Ditadura vinha dos sectores mais conservadores do Exército a que Leal Marques e o próprio Salazar se referiam em privado como sendo “a direita”. De modo similar, mas de sinal contrário, na década de 60 nas revoltas populares a Leste, não só na mais famosa na Checoslováquia, como na, a prazo mais importante, na Polónia, os grupos de manifestantes referiam-se aos governos dos partidos bolcheviques como “a direita”. Isto leva a pensar que a única definição com alguma consistência atemporal dos dois conceitos é que a direita representa as forças que querem manter o status quo e a esquerda as que o querem derrubar. Infelizmente nem sequer este conceito é absoluto, porque em estados em crise de dissolução de um Estado podem surgir forças antagónicas que a única coisa que têm em comum é querer derrubar o mesmo status quo. Mas, no caso da Argentina, em que nem os Peronistas nem os Republicanos estão verdadeiramente interessados em derrubar ou reformar profundamente as instituições políticas, económicas e sociais, Javier Milei, que, recorde-se, quer acabar com o Banco Central e “dolarizar” a economia, seria o candidato de esquerda.
Porém, noutras tipologias é inegável que Milei é um candidato de direita e o próprio não nega a sua preferência pelos políticos e partidos que, noutros países, carregam essa bandeira, em particular o VOX em Espanha, onde já foi presença em pelo menos um comício. Mas isto não significa que o movimento que Milei lidera se possa integrar comodamente neste bloco. É uma adesão àquele grupo de organizações políticas que apostam por derrubar o Socialismo nas suas variadas vertentes. Na medida em que o Socialismo é de esquerda, Milei é de direita. Mas seja por necessidade, seja por convicção, Milei é muito mais radical que qualquer dos seus congéneres nos países desenvolvidos, até porque se enfrenta a um Estado cujos regimes no último século, seja em democracia, seja em ditadura, seja com governos de esquerda seja com governos de direita, sempre se refugiaram na Autarcia, isto é, em fazer da Argentina um país ineficientemente autossuficiente, protegendo a sua economia da concorrência externa e, inclusivamente da interna, criando grupos económicos e elites sociais que se dedicam à destruição de riqueza, ao parasitismo económico e à extracção monopolista dos excedentes da produção, em detrimento da população em geral.
Y si te viene alguna duda, che
Vení, agárrala, que está dura
Si esto no es una dictadura
¿Qué es? ¿qué es?
É que o principal problema da Argentina é económico. Com uma cultura europeizada, uma formação que permite aos profissionais argentinos, e não apenas os futebolistas, triunfar no exterior, recursos naturais e bens, particularmente os agrícolas, que o resto do mundo demanda, a Argentina não tem nenhum motivo para ser um país pobre. Aliás, até à Grande Depressão foi dos países mais ricos do mundo e é esse o objectivo económico da liberalização que Milei promete. O problema da Argentina, como o da Venezuela chama-se Socialismo, que é um nome pomposo para definir a apropriação através do aparelho estatal da produção de bens e serviços para a sua posterior redistribuição através de um qualquer critério político. Assim como a Venezuela é essencialmente um país produtor de petróleo mas a população não encontra gasolina para abastecer os carros, a Argentina é um dos maiores produtores de carne bovina do mundo onde é cada vez mais difícil à população ter acesso a esse bem. Os argentinos eram os maiores consumidores de carne bovina do mundo. Nos anos 50, o consumo per capita era de quase 100 Kg por habitante. Em 2021 foi de 47,6 Kg e continua a diminuir. Para permitir que, ainda assim, os argentinos possam comer carne de vaca, os governos peronistas foram introduzindo crescentes restrições à exportação de um produto que, por isso mesmo, é cada vez mais escasso. Na última década a produção de carne na Argentina reduziu-se mais de 20%. Julgo que foi Milton Friedman quem disse que se se pusesse o governo a gerir o Deserto do Saara, em 5 anos a areia acabava. O Socialismo do Séc. XXI não é diferente do do Séc. XX. O empobrecimento dos Argentinos nas últimas duas décadas é real e vai em sentido contrário ao da maioria dos seus vizinhos no Continente, que nem sequer são os melhores alunos em Economia do planeta.
Volvió la mala, fue corta la primavera
Cerdos miserables comiendo lo que nos queda
Se llevaron la noche, nuestra última alegría
Gente poniendo huevo’ para salir de esta ruina
A medida estrela de Milei é o encerramento do Banco Central. À primeira vista parece uma loucura que um país possa sobreviver sem uma moeda própria. Mas o dinheiro, como qualquer outro bem, só existe para o benefício dos indivíduos. E, no caso dos bens sociais como o dinheiro, apenas se for um instrumento útil para a sociedade em geral. Os governos podem manter um bem em funcionamento muito além daquilo que seria desejável para a sociedade, mas não o podem fazer indefinidamente nem a qualquer preço. O custo para os portugueses manterem a TAP ou pagarem o BES em nome de um difuso orgulho nacional ou de uma putativa estabilidade financeira empalidece ao lado do custo de os argentinos suportarem o peso.
O dinheiro moderno, erroneamente chamado dinheiro fiat é, em última análise, um crédito fiscal. O Estado tem o poder real de confiscar bens e serviços à população e o dinheiro é a forma de o Estado antecipar o seu consumo emitindo umas promissórias que a população mais tarde fará regressar ao estado sob a forma de impostos, momento em que é realmente expropriada. Este crédito tem muitas vantagens na hora de ser utilizado como dinheiro e é por isso que é normalmente utilizado como tal nas economias modernas. Mas ao contrário do que muita gente pensa, o Estado não tem a potestade de obrigar unilateralmente as pessoas a utilizarem esse crédito como dinheiro. Até pode criar uma legislação, o curso legal, que obrigue à presença desse crédito em todas as transacções, que isso não transforma o crédito fiscal em dinheiro, mas apenas em meio de troca (um que, na medida em que as pessoas possam evitar, o farão). Esse crédito, descredibilizado, nunca servirá de reserva de valor, que é outra das funções que o dinheiro cumpre. A rejeição do crédito fiscal como reserva de valor leva ao fenómeno da inflacção e, nos casos mais extremos à hiperinflação.
Como ser o emissor do dinheiro é uma fonte de poder e rendimentos muito importante, os estados solventes têm por costume dar garantias de que o crédito que emitem para esse efeito não perde valor ou, pelo menos, não perde mais que um valor aceitável, que obrigue a procurar alternativas mais custosas. As duas principais garantias dadas nesse sentido, nos estados modernos, são a existência de um banco central independente e o controlo da emissão de dívida pública. Infelizmente nas últimas décadas estes mecanismos de controlo têm sido progressivamente relaxados, mas, regra geral, tem funcionado suficientemente bem para que as sociedades ocidentais não deixem de confiar no dinheiro em circulação emitido pelo Estado.
Noutros sítios isto não foi bem assim e, para além do caso mais famoso do Zimbabué, existem dois casos recentes na América Latina de dolarização da economia, isto é, da abolição da moeda local e do uso legal do dólar nas transacções correntes entre os cidadãos, que são Equador e El Salvador. Todos estes casos resultaram simplesmente do reconhecimento da falência do dinheiro emitido pelo governo local e da necessidade de encontrar uma alternativa. A Argentina não é uma excepção a esta regra. A inflação desde o ano 2000 foi de quase 7000%. Isto significa que o peso perdeu 99,96% do seu valor. Só nos últimos 4 anos, os 4 anos da presidência do peronista Alberto Fernández, a inflacção foi de mais de 500% o que significa que, só nestes 4 anos, o peso perdeu 99,3% do seu valor. A questão não é se a economia argentina vai ser dolarizada, a questão é quando e como.
O como é importante porque se trata da dolarização de jure da economia argentina que vem ratificar a realidade de facto. Que infelizmente não o é para a totalidade da população. Não o é para os exportadores. Neste momento os exportadores não exportam, ou exportam o mínimo, porque sabem que os dólares que recebem em troca vão ser confiscados pelo governo a um valor oficial muito inferior ao valor que a demanda internacional real de pesos argentinos ditaria. Não o é para a população em geral, porque só tem acesso a um mercado negro muito restrito, que consiste nos poucos dólares que andam em circulação para a necessidade real de dinheiro no país. Se aos exportadores se lhes retiram os dólares a preço de saldo e à população se vendem a preço de ouro, alguém está a ganhar essa diferença, e esse alguém é o Estado argentino que, como ainda assim não tem suficiente para se manter, vai aumentando não só a emissão de moeda como a de dívida pública, cuja remuneração já custa 12% do PIB por ano e continua a aumentar.
A dolarização de Milei consiste em deixar os exportadores exportarem livremente e, desse modo, conseguirem os dólares necessários para que o país os possa ter em quantidade suficiente para a necessidade de dinheiro da população. Ao mesmo tempo, ao deixar de existir moeda própria, o Estado deixa de poder recorrer a esse expediente para se financiar e, se o quiser fazer, terá que demonstrar a sua solvência perante os seus credores. Qualquer outro expediente fracassará, como já ficou demonstrado pelas supostas reformas de Macri, que foram ineficazes para contrariar a crise económica.
Y ya no hay ninguna duda
Se está pudriendo esta basura
Fisura ya la dictadura
Del rey
E no fundo essa é a grande omissão dos meios de comunicação quando tentam comparar o fenómeno Macri com o resto de movimentos tildados de ultradireita: os já 22 anos desde o corralito que fundiu as poupanças e os salários das classes trabalhadoras para pagar uma crise que nem assim acabou. Enquanto o eleitorado dos chamados partidos de ultradireita na Europa tem uma forte componente de pessoas idosas, Milei recebe o voto jovem. Na Europa os votantes nos partidos da tal ultradireita, regra geral, são pessoas que essencialmente reclamam o Estado Social que lhes prometeram, que em grande medida pagaram e que o Estado lhes nega, simplesmente porque não tem capacidade de devolver o que prometeu. Para juntar o insulto à injúria, tenta-lhes vender a justificação da deterioração dos serviços sociais e da redução do investimento público (que não a despesa) em bens de capital encapotada de lutas climáticas, de igualdade de género ou erradicação do racismo, que são formas baratas de vender ideologia (excepção feita para a política energética no combate ao clima que sai muito cara). Na Argentina, os eleitores de Milei são gente jovem, pessoas que viveram toda a sua vida com a hiperinflação, a pobreza, a corrupção e a insanidade dos líderes políticos. Enquanto que na América do Norte e na Europa a juventude questiona a sua identidade de género, na Argentina a juventude questiona a falta de géneros nos supermercados.
E é por isso que, mesmo admitindo que no próximo dia 22 de Outubro Javier Milei não será presidente por obra e graça de um consenso do extremo-centro, que continuará, como canta Fito Paéz, a “explicar ao mundo inteiro o nosso [da Argentina] nada da História Universal”, durante a noite de 13 de Agosto os jovens eleitores em Buenos Aires cantaram a plenos pulmões como se fossem já donos do amanhã:
Se viene el estallido
Se viene el estallido
De mi garganta, de tu infierno, también.
Artigo publicado pelo Observador em 2023/09/15, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.