Ricardo Dias de Sousa .
A semana começou com a queda do governo francês. Com 364 votos contra e 194 a favor não havia muito a dizer. Foi a crónica de uma morte anunciada. O que nasce torto dificilmente se endireita. O bloco governamental não é aquele que tem mais deputados, a esquerda conseguiu mais, e muito menos o que obteve mais votos nas urnas. Esse foi o partido de Le Pen. Em França idealizou-se um sistema eleitoral para impedir os extremos de governar. Isto, dito assim, até pode parecer uma coisa boa. As chamadas Democracias Liberais do Ocidente idealizaram um sistema de travões e contrapesos (checks and balances) para impedir que o poder caísse na rua, protegendo as minorias da opinião maioritária. Isso significava limitar o poder executivo, isto é, aquilo que o poder político, mesmo aquele eleito democraticamente, podia impôr aos cidadãos.
Só que o modelo democrático francês foi reformado de forma a impedir o exercício da democracia. Sempre que um candidato não obtenha maioria logo à primeira existe uma segunda eleição onde os outros candidatos podem “desistir” para garantir que o mais votado não ganhe. É a exaltação do “voto contra”. Isto poderia até nem ser um grande problema não fora o facto de nas últimas duas décadas os governos terem derrubado os checks and balances invocando a legitimidade democrática. O sistema eleitoral francês foi desenhado pelos mesmos políticos que abusaram da legitimidade democrática para limitar a margem de actuação dos indivíduos, sem pensar nas consequências mais além do próximo círculo eleitoral, para impedir que o imenso poder que concentraram caia agora nas mãos de outros, menos virtuosos, aos seus olhos.
Isto é, sem dúvida, um tema para reflectir. A crença no Estado Omnipotente, que exclusivamente através da decisão democrática ia fazer-nos mais livres e justos, instalou-se acriticamente entre a população, sem qualquer justificação racional, mas, mais que uma reflexão sobre o real potencial da Democracia (cuja definição estrita é um regime governado pela maioria) este pequeno texto simplesmente pretende explicar como se chegou aqui, em maior ou menor medida, nas democracias europeias. E França é, como tantas vezes em política, o caso por excelência.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a metade ocidental do Continente (a oriental foi impedida), com as excepções de Portugal, Espanha e Grécia – esta última ocidental por intervenção britânica – apostaram em construir os chamados Estados do Bem Estar (ironicamente inspirados nas utopias fascista e nazi sobre o ideal de sociedade) mas dando aos cidadãos a possibilidade de eleger democraticamente estes programas. Sobre o tema já escrevi há muito tempo, simplifico referindo que o Estado do Bem Estar é uma mistura da organização empresarial e laboral da Itália Fascista com a protecção social do berço à cova idealizada pela Alemanha Nazi. O resto, a expansão militar para conseguir o espaço vital para a raça apoiado nas teorias pseudo-científicas dos eugenistas (muitas delas geradas durante a Era Progressista nos Estados Unidos) foram parar ao caixote do lixo da História. Note-se, no entanto, que através de deportações massivas nos primeiros anos da Pós-Guerra, os países europeus em geral ficaram muito mais arrumados culturalmente – que antes se confundia com racialmente (polacos na Polónia, checos e eslovacos na Checoslováquia, alemães na Alemanha, etc.). Esta homogeneidade social dos primeiros tempos da pós-guerra, com forte apoio democrático facilitou a implantação de políticas muito intervencionistas por parte dos governos. Simultaneamente, a prosperidade crescente do continente, assente na combinação industriosa de capital e trabalho permitiu a acumulação do primeiro e o consequente aumento da produtividade do segundo, num círcuito virtuoso a que os franceses chamaram “Les Trente Glorieuses”, idealizados tanto à esquerda como à direita. É a esta utopia passada que a grande maioria dos franceses quer voltar.
Isso explica o êxito da polarização em França. Cada bloco garante ter a fórmula para voltar a essa infância idílica do Estado do Bem Estar Francês (e acusa os seus adversários de o estarem a destruir). Só que esse tempo nunca existiu. É verdade que o Estado do Bem Estar foi erguido durante essa época de crescimento económico global sob a égide da Pax Americana e do compromisso da onça de ouro a 35 dólares obtido em Bretton Woods. Compromisso que, numa dessas ironias de que a História está repleta, se revelou insuportável quando o governo francês ameaçou converter as suas reservas de dólares em ouro.
O Estado do Bem Estar nunca foi sustentável, os custos superavam largamente a capacidade de produção de riqueza de sociedades que até a estavam a produzir em quantidades nunca observadas e, o único motivo pelo qual se sustinha era pelos compromissos contraídos a prazo, leia-se dívida. Quando a capacidade de endividamento, isto é, as promessas de pagamentos futuros em ouro ultrapassaram largamente a possibilidade de serem honradas, o sistema colapsou e, no seu lugar, apareceu a inflação, o desemprego e a escassez. Para aumentar a sua capacidade de recusar pagamentos em dólares desvalorizados incapazes de serem convertidos em ouro ao valor anunciado, os países produtores de petróleo juntaram-se em cartel para exigir maiores quantidades de papéis verdes em troca do ouro negro pelo que ao colapso do sistema monetário se chamou crises petrolíferas.
A consequência foi uma década tumultuosa enquanto o sistema monetário se adaptava à nova realidade. A flutuação irrestrita do valor das moedas nacionais umas em relação às outras. Com a necessidade de manter alguma estabilidade no valor do dinheiro, as políticas expansionistas de gasto público foram sendo penalizadas com inflação, taxas de juro elevadas e desvalorização do poder de compra internacional. Foi neste caldo de cultivo que apareceram Thatcher e Reagan na esfera anglo-saxónica. Em França, votou-se socialista na esperança de manter o Estado do Bem Estar, mas Mitterrand apenas entregou retórica nesse capítulo, o estado emagreceu privatizando a grande indústria nacional que tinha ido adquirindo à medida que esta se tinha ido tornando mais improdutiva.
Só que apesar moedas inconvertíveis, os estados passaram a contar com um aliado improvável na manutenção da ilusão de que o Estado do Bem Estar podia continuar a existir: os bancos centrais. O dinheiro moderno é crédito. O seu valor assenta na capacidade de os estados aceitarem de volta o dinheiro que emitiram, isto é, a capacidade de cobrar impostos. Ao emitir dinheiro os estados modernos dotam a economia do dinheiro necessário para funcionar e estas, através do sistema bancário expandem a oferta monetária e permitem que o nível de investimento supere a quantidade de poupança real que existe. Com a necessidade de converter o crédito em ouro quando este se extinguia, o sistema tinha uma âncora que instigava prudência aos agentes financeiros. Com o dinheiro-crédito do estado, o emprestador de último recurso, isto é, o banco central, em teoria não tem limites à sua capacidade de intervenção para salvar o sistema financeiro quando este ultrapassa os limites da prudência. O estado, se assim o desejar, pode sempre emitir mais dívida, pelo menos enquanto essa dívida tiver procura. E nos últimos 40 anos essa dívida teve sempre muita procura porque, num círculo perverso, é o principal activo dos respectivos bancos centrais na gestão do valor do dinheiro e dos grandes fundos de pensões, públicos e privados, pois é a dívida mais segura que assenta na capacidade de expropriação por parte do estado da riqueza que se cria no país.
Como aparte, isto era perfeitamente visível quando cada país europeu tinha a sua moeda não-convertível. A economia da Alemanha era produtiva e o emprego elevado porque com superavits o seu governo mantinha o marco forte. Mas a França recorria sistematicamente ao déficit público. Quando a situação se tornava insopurtável pediam crédito à Alemanha para assim, com a procura de francos, não proceder a desvalorizações que revelavam a menor competitividade da economia francesa obrigada a suportar o custo de um estado sobredimensionado. Quando os alemães recusavam, a França desvalorizava. Esse era o modelo económico da CEE, cada país fazia as suas escolhas democráticas, e pagava o custo dessas escolhas. Com o Euro isso desapareceu e a Alemanha deixou de poder demonstrar ao resto dos países europeus o caminho a seguir. A França, mais que nenhum outro abusou desta promessa implícita de mutualização da dívida europeia para aumentar os déficits públicos sem a consequência desagradável da desvalorização externa e inflação doméstica.
Durante as duas últimas décadas a França raramente cumpriu um Pacto de Estabilidade que já é muito mais laxo do que quando foi criado para permitir a criação do Euro. Neste momento já não é preciso cumprir com os famosos critérios de 60% do PIB de dívida pública e déficit público anual de menos de 3%. Basta simplesmente fazer um plano em que se diz que essa meta será conseguida no futuro. Só que a França já entrou em território onde nem sequer uma folha de Excel pode prometer isso. Por isso se fala em intervenção do FMI. Com todos os seus defeitos, os governos de Macron são os únicos que ainda tentam fazer o esforço de quadrar as contas de um estado que gasta muito acima das suas possibilidades. Mas a população francesa exige (e vota) por muito mais gasto público. A expansão do crédito (público e privado) assente numa moeda não-convertível deu às pessoas a ilusão de que não existem limites ao que se pode gastar. Temendo perder os votos que os mantinham no poder, os políticos do centro foram chutando para a frente as reformas. Agora estão a descobrir que com isso cometeram dois erros: deterioraram a situação económica das pessoas ao mesmo tempo que as habituaram a pedir cada vez mais. O resultado vai ser mais impostos, mais inflação (que é um imposto escondido) e menos e piores serviços prestados pelo Estado Francês. Não que nos outros lados a situação seja muito diferente, simplesmente nas grandes crises políticas, económicas e sociais, a França está habituada a liderar.
Adenda:
Enquanto escrevia estas linhas soube que Charles James Kirk foi assassinado. Desconheço o motivo. Esse só o pode conhecer o assassino. Junto-me a milhares, talvez milhões de pessoas nas condolências à família e na imensa pena que a sua morte provocou. Infelizmente houve muita gente que, ou foi incapaz de manter o decoro ou chegou mesmo a celebrar descaradamente o acontecimento. Toda a gente é livre de desejar e alegrar-se com o que quiser, incluída a morte de outra pessoa. Mas quem se esforça por demonstrar publicamente o seu júbilo quando essa morte é o resultado de um assassinato ou é irremediavelmente estúpido ou está convencido de que isso é uma manifestação de virtude. E estes últimos são os que merecem ser combatidos, porque essa é a sociedade que querem construir. Uma em que os seus inimigos, os seus adversários, ou simplesmente as pessoas que não partilham do seu ponto de vista merecem a morte, preferencialmente prematura e violenta. É para esse combate que a Oficina da Liberdade foi criada. O Charlie Kirk é um dos nossos, não necessariamente pelo que defendia, mas pela forma como o fez. O meu único desejo para ele é que no final tenha tido razão. Não nos seus argumentos, isso agora já não lhe serve de muito, mas em que o Deus em que acreditou o acolheu no seu seio e lhe sacie a sede de justiça que na Terra lhe foi negada.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/09/12, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.
