Eduardo Maximino .
No passado domingo realizou-se a primeira volta das eleições presidenciais brasileiras. Os resultados, parece, surpreenderam muita gente, com uma diferença de cerca 5 pontos percentuais entre Lula e Bolsonaro, cerca de 57 milhões de votos para o primeiro e 51 milhões para o segundo.
Dizer que o Brasil tem pouca sorte é um eufemismo – ter de escolher entre um corrupto incapaz de alinhavar uma ideia escorreita e um bronco também incapaz de alinhavar uma ideia escorreita está para lá disso -, mas não pretendo com este texto discutir as virtudes (cof, cof) e defeitos dos dois candidatos, antes, olhar para a forma como por cá, e um pouco por todo o mundo ocidental, imagino, se qualifica ambos e quem vota neles.
O processo é relativamente óbvio e simples para quem pensar nele. Lula, de esquerda, representa o Bem, e Bolsonaro, de direita, o Mal. A partir daqui a coisa decorre como se impõe: Lula transcende a dimensão corpórea e deixa de ser um indivíduo (que liderou um esquema de corrupção quase sem paralelo) para passar ser a uma ideia. Ninguém deixou isto tão claro como o inefável Boaventura Sousa Santos quando o visitou na cadeia: “O que vi foi a grandeza de um homem que sabe inspirar não só o país, mas todos aqueles que o visitam. Não se trata do Lula pessoa, mas do Lula ideia. A ideia de um país com esperança em uma sociedade melhor e inclusiva, mais justa e fraterna.” Bolsonaro, esse, ganha chifres e cauda e passa a fascista e “genocida”, como lhe chamou Catarina Martins. (Isto não é novidade, claro, Che Guevara, um louco, assassino e homofóbico é ainda hoje figura maior no imaginário da esquerda progressista.)
A primeira derivada disto é que o voto num e noutro também qualifica o eleitor. Como dizia um humorista e activista brasileiro da moda (engraçado como a maioria dos humoristas da moda são activistas – já a maioria dos activistas tem muita piada, mesmo que involuntária, mas isso é outra conversa), não interessa ao PT disputar o voto dos eleitores de Bolsonaro porque, provavelmente, lá só existem fundamentalistas, racistas e machistas, que graças a Bolsonaro 43% dos brasileiros se converteram à extrema-direita. Ou seja, quem vota no Mal tem de ser um troglodita – não há meio-termo -, qualquer análise mais subtil e elaborada é desperdício de massa cinzenta (o mesmo, aliás, que se passa com Putin, que quem não equiparar a Hitler é logo acusado de ser pró-russo – qualquer pensamento que vá para lá do bem e do mal e da respectiva sinalização de virtude é tempo perdido). A segunda derivada é que o Mal, por definição, não joga limpo, e qualquer vitória ou votação mais expressiva assenta sempre no engano – o epiteto “populista” é quase exclusivo da direita – ou na mentira – as fake news são, parece, território onde só a direita navega, não ocorrendo a estas almas que, por exemplo, a qualificação de Bolsonaro como genocida, além de ridícula, assenta numa mentira.
Note-se que tudo o que digo acima pode ser invertido, e casos há de gente para quem Bolsonaro representa a luta contra o “Mal Globalista”, ou contra aqueles que querem corromper as crianças e legalizar a pedofilia, por exemplo (a sério, há muito doido por aí). Acontece que, como referi no início, o que pretendo é olhar para a forma como cá se avaliam os candidatos e os eleitores, e são muito poucos os portugueses que, mesmo à direita, olham para Bolsonaro e vêm mais do que um boçal incapaz de qualquer ideia mais complexa ou estruturada. Ao invés, a esquerda lusa nutre uma admiração por Lula que só pode ser justificada com diagnóstico clínico ou por uma patológica tendência para elevar corruptos à condição de heróis. É que não se trata de achar que o petista corrupto é um mal menor quando comparado com o capitão chalado, é mesmo tê-lo como um estadista capaz, um ser ungido que guiará os brasileiros no caminho da prosperidade.
Como atrás ficou claro, não invejo a sorte dos brasileiros quando a escolha é entre estes dois cartoons, mas parece claro que não pode haver mais 50 milhões de trogloditas num universo de cerca de 156 milhões de eleitores e que têm de existir razões para a votação em Bolsonaro para lá da maldade ou da “falta de esclarecimento de uma grande parte dos brasileiros”, como me dizia ontem alguém.
Uma sondagem encomendada pela RecordTV em 2018 revelava que os principais medos da população para os quatro anos seguintes eram perder um ente querido de maneira violenta (87% dos inquiridos) e sofrer algum tipo de violência pessoal, como um assalto (85% dos inquiridos). Os números são avassaladores e quase impossíveis de apreender por um português medio, para quem a segurança não deve entrar num top 10 de preocupações. Nesse ano, o Brasil registou quase 58000 homicídios o que representa uma taxa aproximada de 27,5 homicídios por 100000 habitantes (30 cidades brasileiras têm taxas acimas dos 100 homicídios por 100000 habitantes). Num dado talvez ainda mais chocante, 40% dos brasileiros já foi assaltado. Nas eleições desse ano Bolsonaro ficou famoso pela frase “bandido bom é bandido morto” e por propor a liberalização do uso e porte de arma (simplifico). Pode discordar-se da forma e do conteúdo, mas, até pela vitória conseguida, parece claro que os brasileiros viram nele alguém que pelo menos tentava resolver o problema que mais os afligia. A verdade é que a criminalidade desceu de forma não despicienda, e mesmo que, como parece, isso pouco se tenha devido à sua actuação, o que é certo é que as coisas são hoje um bocadinho melhores do que eram.
Olhando para as linhas gerais dos programas eleitorais dos dois candidatos que passaram à segunda volta, vemos que na segurança, segundo o El País, Bolsonaro propõe-se «Investir nas capacidades da polícia e do exército, e melhorar seus salários [bem como] resgatar um projeto de lei para flexibilizar as punições legais para os agentes se cometerem excessos no decorrer de uma operação.», enquanto que Lula defende «Priorizar a prevenção e o “uso qualificado” da polícia, […] dar um tratamento especial aos feminicídios e crimes contra a juventude negra e contra a população LGBT. Além disso, o candidato propõe uma nova política de drogas que substitui o atual “modelo de guerra” por um baseado no uso de informações de inteligência para desmantelar as quadrilhas criminosas.» Repare-se que numa das matérias que mais importa aos eleitores brasileiros a diferença entre os dois candidatos não podia ser maior. O incumbente trata o assunto de forma clara, enquanto o candidato do PT não evita um embrulho progressista que deve assustar qualquer cidadão que vive angustiado com a elevada probabilidade de ser vítima de um crime violento.
Como é fácil ver pelo exemplo acima (e é apenas isso: um exemplo), votar em Bolsonaro não tem de ser exclusivo de racistas, fascistas ou machistas, ou, numa versão mais benevolente, fundamentalistas cristãos, capitalistas sem escrúpulos ou gente menos esclarecida. Numa matéria de capital importância o programa do incumbente parece ser bastante mais claro e apelativo para o cidadão brasileiro médio (imagino-me como tal, claro, com todos os constrangimentos que isso traz). Deste lado do Atlântico é fácil qualificar de troglodita quem vota num personagem daqueles, mais difícil é entender (não pretendi fazê-lo) uma realidade que cria Bolsonaros e Lulas. Mais difícil ainda, parece, é não idolatrar um corrupto só porque é de esquerda.
Artigo publicado pelo Observador em 2022/10/07, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.