Isabel Menéres Campos .
António Costa e o PS estão à frente dos destinos de Portugal há cerca de sete anos. Até hoje, não nos lembramos de ter sido levada a cabo nenhuma reforma digna desse nome e que tenha tido impacto na melhoria da qualidade de vida dos portugueses e das condições económicas do país. Bem pelo contrário. Dos governos chefiados por Costa, apenas nos conseguimos lembrar dos escândalos, das demissões, da endogamia, da total falta de ambição e da capacidade ímpar que o líder do governo socialista tem para ir vendendo a banha da cobra, de anúncio em anúncio, sempre bafejado pela sorte. Lembramo-nos também, e muito, da progressiva supressão de liberdades essenciais num Estado de Direito democrático. Infelizmente, os portugueses estão habituados a conviver com esta tacanhez. Reagem com normalidade à apropriação do estado pelo PS, acham normal pagar uma imensidão de impostos, aceitam passivamente as oligarquias familiares socialistas e estão conformados com a ideia de viver num país sem horizonte, sem ambição e sem rumo. Na verdade, o que se passa neste momento em Portugal devia ser escrutinado ilimitadamente pela opinião pública, não por uma questão partidária ou ideológica, mas por uma questão de decência.
No que respeita à novíssima “crise da habitação”, que parece ser o novo desígnio nacional apontado pelo Governo, recordemos o que nos trouxe até aqui. A seguir à bancarrota do país, às mãos de Sócrates, de quem António Costa era preciosíssimo acólito, veio um governo de direita PSD-CDS para consertar as trapalhadas socialistas, tendo de o fazer nas condições negociadas para o resgate financeiro por esses mesmos socialistas. Conseguiu-se, no final do ajustamento, devolver a credibilidade internacional a Portugal.
Entretanto, para resolver o “problema” da habitação, houve já muitas “estratégias” e muitos “programas”. Houve a “Estratégia Nacional para a Habitação”, de 2015, a “Nova Geração de Políticas da Habitação”, de 2018 (NGPH), o programa “1.º Direito – Programa de Apoio ao Acesso à Habitação”, de 2018, a Lei de Bases da Habitação, de 2019, o “Chave na Mão – Programa de Mobilidade Habitacional para a Coesão Territorial”, de 2019, entre outros. E agora temos este pomposo anúncio do programa “Mais Habitação”. Quantos mais programas e estratégias houver, mais anúncios teremos porque o problema não é o problema da habitação, é o problema da pobreza sistémica e profunda que o país vive há anos. O socialismo é isto: uma crença, quase religiosa, na ideia de que o Estado pode controlar e planear tudo, dizer o que as pessoas podem e devem fazer, não contando com contingências imprevisíveis ou as circunstâncias pessoais de cada indivíduo e da vontade de cada um agir em liberdade.
Mas vamos ao regime do arrendamento.
A actual “lei das rendas” é uma lei de 2006, ou seja, do tempo de Sócrates e de Costa. Foi essa lei (Novo Regime do Arrendamento Urbano, abreviadamente NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro), que veio abrir a possibilidade de os senhorios porem fim ao vinculismo dos contratos antigos, permitindo, em determinadas circunstâncias, que se pudesse pôr termo aos contratos ou se pudesse apor-lhes um prazo ou ainda se pudesse actualizar as rendas. No âmbito desse programa posto necessário por causa da bancarrota de Sócrates (repito, de quem Costa era ministro e muito próximo), em 2012, esta lei (NRAU) foi revista (pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto). Porém, apesar das inúmeras alterações com vista à liberalização do regime do arrendamento, o legislador teve a preocupação de acautelar a situação de inquilinos mais vulneráveis, como o caso dos deficientes com elevado grau de incapacidade ou dos idosos.
Eis algumas dessas medidas “liberalizadoras” desta lei de 2012:
– a liberdade de estipulação do prazo contratual;
– a agilização do processo de despejo por falta de pagamento de renda, prevendo-se um mecanismo abreviado para o efeito, assim que estivessem por pagar duas rendas;
– o aprofundamento das hipóteses (que já existiam na lei de 2006) de o senhorio poder pôr fim aos contratos antigos e do procedimento (mais ou menos complexo) para actualização das rendas;
– a alteração do regime das obras em prédios arrendados, permitindo-se a desocupação com vista à realização de obras de demolição ou restauro profundos;
– a concretização da denúncia imotivada do contrato de arrendamento em determinadas circunstâncias.
Com a subida da geringonça ao poder, o NRAU, na versão de 2012, voltou a ser revisto de forma relevante em 2017 e 2019, tendo estas alterações sido sempre no sentido de dificultar, cada vez mais, a vida aos senhorios, o que, obviamente se veio a reflectir nos custos das rendas, porque os proprietários, perante o quadro legal cada vez mais árduo e restritivo, se viram na circunstância de ter de aumentar os valores locatícios, como forma de compensar o risco acrescido que representaria tal negócio.
Das alterações relevantes feitas em 2017 e 2019 (no tempo da geringonça), podemos assinalar as seguintes:
– a diminuição da indemnização ao senhorio pelo atraso no pagamento da renda, de 50% para 20%;
– o aumento do número de rendas em atraso para fundamentar o despejo e do prazo suplementar dado ao arrendatário repor as rendas antes de o senhorio poder intentar o procedimento de despejo;
– a imposição do prazo mínimo dos contratos;
– aumento de dois para cinco anos para o aviso prévio no caso de denúncia imotivada nas circunstâncias admitidas pela lei.
Refira-se que, em 2019, veio a rever-se também o regime dos arrendamentos comerciais. E aqui, repare-se, não é o direito fundamental à habitação que está em causa. É a subsistência de lojas, escritórios, consultórios, oficinas e estabelecimentos de toda a sorte, muitas vezes decrépitos, sem giro comercial, negócios inviáveis economicamente e sem qualquer hipótese de sobreviver, não fosse o facto de “receberem”, indirectamente, uma subvenção “paga” compulsivamente pelo proprietário do imóvel, obrigado a subsidiar aquela actividade económica, em substituição de um Estado avassalador. Tinha sido a lei de 2012 a permitir a revitalização dos centros das cidades como o Porto, Coimbra e Lisboa, com a substituição de lojas falidas e degradadas por outras que vieram trazer animação às cidades que há vinte anos atrás estavam desertas e onde tínhamos medo de passear à noite. Recordo também, com conhecimento directo do assunto, que, antes de 2012, muitos senhorios, idosos e reformados, viviam numa situação de quase indigência, por causa dos valores baixíssimos e até ridículos das rendas que recebiam, sem qualquer capacidade económica para fazer obras nos prédios que cada vez se degradavam mais.
Nos últimos anos, a esquerda andou sempre a falar das elevadas rendas, sugerindo que a culpa era dos proprietários que queriam “ganhar dinheiro” à conta dos arrendatários. Estas medidas agora anunciadas levam-nos a pensar que o que o governo quer é que sejam os proprietários a fazer acção social, cedendo as suas casas para arrendamento, mesmo contra a sua vontade, ameaçando com o arrendamento forçado dos imóveis devolutos, esquecendo que o direito de propriedade compreende o direito de usar, fruir e dispor, mas também o direito de não-usar.
Para resolver o problema das rendas, o governo não pensou, por exemplo, em agilizar o regime dos despejos, permitindo que quem coloca casas no mercado de arrendamento possa, com relativa facilidade, despejar os arrendatários que não pagam (acenam com uma mirífica ideia de que o Estado suportará as rendas em caso de atraso no pagamento, mas duvido que, com a carga burocrática associada a isso, a medida tenha aplicação efectiva). Aliás, as normas que permitiam ao senhorio despejar rapidamente no caso de não pagamento foram quase todas revertidas pela geringonça. O problema do mercado do arrendamento é, pois, gerado pela rigidez do seu regime jurídico. Quem arrisca colocar as casas no mercado de arrendamento sabe que, se o arrendatário não pagar, se vai defrontar com um processo judicial burocrático, caro, moroso e incerto não só para despejar como também para cobrar as rendas que ficaram por pagar, pois, na maior parte das vezes, o arrendatário não tem património e o seu salário é impenhorável porque está no limiar do salário mínimo nacional.
Para resolver o problema das rendas, o governo também não pensou em disponibilizar para arrendar, de imediato, o vastíssimo património devoluto do Estado que nem o próprio consegue inventariar. Num relatório de 2021, o Tribunal de Contas alertava para as fragilidades na inventariação do património imobiliário do Estado e apontava que, no final de 2019, continuava a não existir um inventário completo e actualizado desse património. Dizia-se nesse documento que, dos 23.710 registos no Sistema de Informação dos Imóveis do Estado (SIIE), 9.495 imóveis pertenciam ao domínio privado do Estado, o que não coincidiria com o número constante noutras bases de dados públicas. Além disso, segundo aquele Tribunal, permanecia desconhecido o universo dos imóveis a inventariar e haveria dificuldades no respectivo processo de regularização jurídico-registal. Não se sabe quantos são, mas sabe-se que muitos destes imóveis do domínio privado do Estado estão devolutos e esses poderiam ser arrendados nas condições que o governo quer agora impor aos proprietários e o Estado pouparia dinheiro. O que não deixa de ser extraordinário é que o Estado, não sabendo quantos imóveis lhe pertencem, tenha a pretensão de tomar de arrendamento, de forma coerciva, prédios que pertencem a privados. De referir também que, em 2020, através do Decreto-Lei n.º 82/2020, de 2 de Outubro, foi regulamentada a “criação da bolsa de imóveis públicos para habitação”, a qual se destinava a aumentar da oferta de habitação com apoio público, a ser disponibilizada nos regimes de arrendamento acessível ou apoiado, de renda condicionada, de habitação a custos controlados ou outros. Ao abrigo deste regime, não se sabe quantos imóveis foram colocados no mercado, nem quantos arrendamentos estão em vigor, nem quais os valores das rendas.
A tudo isto acresce a questão do preço de venda das casas. Segundo estatísticas do INE, de Junho de 2022, o Índice de Preços da Habitação em Portugal subiu 9,4% em 2021. Além disso, os preços continuaram a subir, nos três primeiros meses de 2022: subiram 12,9%. Para esta subida contribuem diversos factores: a procura elevada, também por estrangeiros, que querem vir morar para Portugal; o preço da construção, agravado pelo preço das matérias-primas; o facto de as taxas de juro terem estado em níveis muito baixos durante muito tempo, o que fez com que o crédito bancário fosse barato. Porém, o mais importante realçar neste quadro é a elevada fiscalidade associada à compra de casa: as elevadíssimas taxas de IMT que são devidas sempre que se transacciona um imóvel. O cálculo deste imposto varia consoante o tipo (urbano ou rústico), a localização e a finalidade ou o destino do imóvel e faz-se sempre tendo por base o maior de dois valores: ou o valor patrimonial tributário, ou o valor declarado na escritura de compra e venda. Sobre o maior destes valores é aplicada uma taxa que é estabelecida anualmente no Orçamento do Estado, taxa essa que actualmente pode chegar aos 6%, só havendo isenção para os imóveis de valor inferior a cerca de €92.000. Das várias medidas anunciadas pelo governo, não vejo que haja genuína preocupação com a elevadíssima fiscalidade associada às transacções de imóveis.
Dito isto, o governo acha que a concretização do direito à habitação – que é constitucionalmente protegido e, portanto, a sua importância não está em causa neste meu comentário – deve ser feita à custa dos proprietários e dos senhorios. Esta ideia assenta precisamente na visão ideológica de um PS, socialista, mas cada vez mais comunista: a ideia de que há uma classe explorada e uma classe exploradora – o grande capital e o patronato – esquecendo-se de alguns dados muito importantes:
a) Nem sempre os senhorios são detentores de grande capital: muitas vezes, são pequenos aforradores, que investiram as suas poupanças em imóveis para arrendar e que dependem das rendas para sobreviver com dignidade;
b) Não há nenhuma evidência (científica ou outra) de que o Estado ou as entidades públicas são melhores gestores que os privados, bem pelo contrário; e, portanto, nada nos indica que os arrendamentos geridos pelo Estado venham a ser melhor geridos (aliás basta visitar, no Porto, os bairros geridos pelo IHRU para ver a degradação em que se encontram quando comparados com os bairros de gestão camarária;
c) Em vez de o Estado pretender chamar a si a questão do arrendamento dos prédios devolutos, porque não criar incentivos sérios e credíveis para serem os proprietários a pretenderem, no exercício da sua liberdade, arrendar? Não é ameaçando sanções que se resolve o problema; é criando verdadeiros incentivos, designadamente de natureza fiscal para que as pessoas se sintam motivadas a arrendar.
d) Por fim, não é a habitação que está a ser “sonegada aos portugueses” (como já vi escrito por aqui num artigo do Paulo Trigo Pereira); o que está a ser sonegado aos portugueses é a capacidade de suportar os custos da habitação. Enquanto o governo continuar a considerar uma pessoa que ganha €1500 por mês como “rica”, não é possível aceder, de facto, a habitação condigna. Antes de mais há que encarar de frente o problema dos baixíssimos salários que a generalidade dos portugueses aufere, sendo certo que as empresas não têm capacidade para os aumentar porque boa parte do que suportam é entregue ao Estado a título de impostos e contribuições.
Artigo publicado no Observador em 2023/02/24, integrado na coluna da Oficina da Liberdade.