O inevitável retorno às teorias da justiça

Filipe Arede Nunes                                                                                                                                               .

Esta colectivização, corolário das teorias da justiça distributiva mais radicais, introduz riscos éticos e intensifica os juízos morais cada vez mais presentes nas contendas políticas.

Quando em 1689, depois de consumada a transição entre os reinados de Jaime II e Guilherme III e como corolário da Revolução Gloriosa, John Locke publicou, anonimamente, Dois Tratados do Governo Civil, contribuiu de forma indelével, a partir da pungente defesa da liberdade – dos antigos e dos modernos – contra a tirania e o absolutismo e para a fixação do conteúdo filosófico e simbólico do ideário político do liberalismo.

John Locke, ao equivaler os conceitos de igualdade natural e liberdade natural, ao determinar a igualdade e independência mútua entre os homens e ao negar a possibilidade da sua instrumentalização, eximiu os indivíduos de qualquer dependência moral recíproca e de quaisquer deveres gerais de subordinação sem que tal, todavia, os tenha desonerado do respeito pela lei natural ou razão e, consequentemente, em determinadas circunstâncias axiomáticas e a-históricas, os tenha privado do direito de punição.

Consciente da sociabilidade natural dos indivíduos e da sua inata tendência para a preservação, concluiu, devido à generalização do conflito entre os homens (estado de guerra), firmado num acto voluntário, pela inevitabilidade da existência de relações de poder e pela monopolização dos instrumentos de violência. Desta forma, a existência da comunidade política alicerçava-se na transferência consensual (ainda que tácita) do poder natural dos indivíduos para a sociedade política.

Porém, os homens não são apenas, como na fórmula aristotélica, animais sociais, são também animais proprietários e trabalhadores. Deste modo, a auto-conservação, como desiderato da sociedade civil encontrava-se intrinsecamente ligada à ideia de propriedade privada.

Para o filósofo inglês, embora a terra e tudo o que ela incluísse tivesse sido dada em comum a todos os indivíduos, todo o homem tinha a «propriedade da sua própria pessoa», ou seja, o trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos. Assim, sempre que misturasse o seu trabalho com os objectos da natureza e lhe acrescentasse algo poderia convertê-lo em sua propriedade. Para tal, não necessitava do consentimento dos outros homens e, embora admitisse a existência de limites à propriedade (a «restrição lockiana», baseada na ideia de que a propriedade não poderia lesar ninguém, nomeadamente porque poderia perecer, o que deixou de fazer sentido a partir do momento em que foi inventado o dinheiro), distinguia claramente os industriosos e racionais dos altercadores e distribuidores. Para John Locke, a protecção da propriedade privada permitia, através da procura por cada um do seu interesse 2 pessoal, a promoção do interesse público e garantia que o agricultor inglês vivesse mais confortavelmente do que um rei índio na América.e civil, encontrava-se intrinsecamente ligada à ideia de propriedade privada.

Assim, por um lado, porque os homens são proprietários de si próprios, a comunidade política emergia como resultado da renúncia dos homens ao poder de proteger a sua propriedade, ou seja, a sua vida, a sua liberdade e os seus bens. Por outro lado, ao eliminar qualquer possibilidade de justiça privada, o poder político surgia como um árbitro, intermediário de regras pré-estabelecidas e imparciais (poder legislativo), capaz de as executar em nome da comunidade (poder executivo e judicial). Desta forma, o Estado encontrava a sua razão de ser na protecção da propriedade individual.

Embora a inelutabilidade das relações de poder e não obstante o facto de o mundo do século XVII ser bem diferente do actual (nomeadamente no que concerne aos fins do Estado e à complexidade das relações sociais), tal não desobriga os causídicos das doutrinas antiindividualistas e colectivistas de provar a validade da «vontade geral» como instrumento de ordenação justa da vida em comunidade. Ademais, por um lado, continua a incidir sobre estes o ónus da demonstração de que os indivíduos podem/devem ser privados do produto do seu trabalho, sobretudo através da contestação da legitimidade e os pressupostos da teoria da titularidade nozickiana. Por outro lado, recai ainda sobre estes a obrigação de provar que a existência de uma interferência moral ou ética na liberdade/propriedade dos indivíduos se encontra justificada, como por exemplo nos termos do distributivismo rawlsiano que, numa certa dimensão, nega a essência do imperativo categórico kantiano vertido na fórmula segundo a qual o ser humano é um «fim em si mesmo».

O problema da propriedade (lato sensu) e das limitações a que se encontra sujeita não é uma mera abstração teórica. Encontramos concretizações desta questão nos impostos (v.g. sobre o trabalho, sobre o rendimento, sobre a propriedade, stricto sensu, sobre o consumo) ou nas contribuições para a Segurança Social. Porém, por um lado, se a existência de impostos é antiga (remonta, pelo menos, há cinco mil anos no Antigo Egipto) e é uma decorrência da inevitabilidade da vida comunitária, a determinação das taxas de imposto e as matérias sobre quais incide resulta, exclusivamente, de uma «vontade geral» circunstancial, necessária e axiologicamente comprometida com um qualquer sistema ideológico. Por outro lado, a existência de contribuições para a Segurança Social é relativamente recente (menos de cem anos) e é consequência do aprofundamento do sistema dos seguros sociais (Estado Social ou Providência) e, necessariamente, de um acelerado processo de colectivização dos riscos sociais.

Importa sublinhar, portanto, que o pagamento de impostos e de contribuições para a Segurança Social não resulta de qualquer acto voluntário, antes de uma imposição determinada pela comunidade politicamente organizada e o seu pagamento objecto de controlo por parte dos instrumentos coercitivos do Estado. Corresponde, assim, a uma restrição do princípio lockiano segundo o qual somos proprietários de nós próprios. Esta diminuição do alcance integral do direito de propriedade pode ser legítima – e até justa – e tem muitos defensores, não apenas entre os causídicos de teorias teleológicas como as 3 utilitaristas. Contudo, será que respeita adequadamente os indivíduos? Não os tratará como um fim ao serviço da maioria?

Embora exista um relativo consenso (ainda que frágil) sobre as funções do Estado, permanecem por debater os efeitos da continuada colectivização da sociedade, ideia, aliás, que se encontra em total antinomia com a propalada atomização social. Esta colectivização, corolário das teorias da justiça distributiva mais radicais, introduz riscos éticos e intensifica os juízos morais cada vez mais presentes nas contendas políticas em matérias tão diversas como as respeitantes ao acesso a cuidados de saúde ou no domínio de prestações sociais não contributivas.

Os riscos éticos e os juízos morais são especialmente gravosos no contexto das sociedades democráticas do Ocidente. Como sublinhou Aristóteles, a politeia (o governo de muitos) poderia perverter-se em demagogia (o governo dos pobres) se não visasse o interesse da comunidade. Antes dele, Platão, também chamava a atenção para a inevitável degeneração da oligarquia em democracia, consequência de uma guerra entre ricos e pobres. Para além da dificuldade potencialmente impossível de transpor no que concerne à definição do que possa ser o interesse da comunidade (ou o bem-comum tomista), o principal perigo, em sociedades intensamente informatizadas e globalizadas, em comunidades impregnadas de ressentimento e incapazes de destrinçar o justo do injusto está, não apenas na possibilidade de desaparecimento total dos elementos democráticos e na sua inevitável deterioração, mas também numa certa atração pelo abismo, ideia representada pelo incessante assalto retórico e normativo aos direitos de propriedade.

Enfraquecer ou colocar em causa os direitos de propriedade conduzirá, fatalmente, à destruição do Estado de Direito Liberal e, concomitantemente, dos institutos jurídicos e das instituições políticas em cima das quais se desenvolveu o Ocidente, em especial nos últimos cem anos. As consequências são, evidentemente, previsíveis. E, apesar de quase todos os críticos deste modelo afirmarem o contrário, não apenas se violará a essência do contrato social tácito firmado entre indivíduos livres e iguais, como o principal efeito da obnubilação do reconhecimento normativo do mérito material e da privação dos indivíduos do fruto do seu trabalho será a homogeneização da pobreza e o indeclinável antagonismo social.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/04/07, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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