Samuel Gregg .
Se há algo que aprendemos sobre os comentários do Papa Francisco acerca de questões que vão desde a economia ao ambiente, é que eles invariavelmente resultam numa miscelânea já previsível.
Partes dessa miscelânea consistem muitas vezes em análises profundas e de sabedoria. Mas constam também falácias, conjunto aleatório de dados extraídos a partir de uma infinidade de estudos disponíveis sobre um determinado assunto (que parece a uma escolha selectiva enviesada), contradições flagrantes e, infelizmente, comentários sarcásticos ocasionais dirigidos a grupos não identificados contra quem o Papa, ou quem elabora estes textos, parece nutrir ressentimentos. Geralmente vem acompanhado de reflexões ocasionais sobre o Evangelho, referências a um ou dois Santos e algumas observações teológicas acrescentadas quase como uma reflexão tardia, como que para lembrar às pessoas que o Papa é na verdade um líder religioso e não o CEO de apenas mais uma ONG.
Infelizmente, o último comentário papal, a Exortação Apostólica Laudate Deum, enquadra-se neste padrão. Sem o primeiro parágrafo, alguns parágrafos no final, duas menções a Francisco de Assis e um total de três referências a Jesus Cristo num texto de pouco mais de 7.000 palavras (em inglês), o documento passaria facilmente por algo redigido por um grupo ambientalista secular para apresentação num congresso.
Estes documentos contribuem frequentemente de forma significativa para a reflexão pública sobre temas tão complicados como a forma de abordar o nexo entre o crescimento económico que tira as pessoas da pobreza e as preocupações ambientais genuínas. No entanto, literalmente milhares desses textos foram escritos e apresentados a inúmeras audiências nos últimos 40 anos. Qual é (como poderia perguntar um economista) o “valor acrescentado” que um líder religioso pode trazer para esta discussão?
Quando um líder religioso escreve sobre um tema como o ambiente, pode-se presumir que o foco estaria na contribuição única que uma determinada tradição religiosa poderia aportar a tais debates. O Judaísmo e o Cristianismo, por exemplo, têm histórias muito ricas de reflexão sobre a relação da humanidade com o mundo natural.
Não temos essa sorte com a Laudate Deum. Há apenas uma reflexão teológica mínima no texto. Grande parte da Exortação consiste na afirmação pelo Papa, com base em partes de dados científicos recolhidos a partir de diferentes fontes e produzidos por organizações como o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC), de que o mundo está a aproximar-se de um ponto sem retorno face às alterações climáticas. Não restam dúvidas de que parte do objetivo deste exercício é repreender quem sugira – com base noutras fontes e análises de dados produzidos por cientistas perfeitamente respeitáveis – que as coisas podem não ser tão claras, tão terríveis ou tão definitivas quanto o afirmam ser os activistas da classe média da Europa Ocidental defensores das “emissões zero” e que se colam a monumentos e obras de arte.
É evidente que o Papa Francisco – e quem quer que o esteja a aconselhar sobre tais temas – acredita ser necessário insistir na existência de um consenso irrefutável e imutável sobre tais assuntos. Por outras palavras, as pessoas devem aderir à causa, um ponto infelizmente sublinhado num tom lamentável que permeia a linguagem desta Exortação, num ligeiro desprezo por aqueles indivíduos, grupos e “interesses económicos” não identificados que, aparentemente, são mais cépticos.
Mas aqui está o verdadeiro problema: o Papa enquanto Papa (e, de forma mais geral, os líderes religiosos enquanto líderes religiosos) não está especialmente qualificado para intervir na dimensão científica destes debates.
Não há nada no carisma particular que os católicos acreditam ter sido atribuído por Cristo ao sucessor de São Pedro que qualifique um Papa enquanto Papa a fazer julgamentos sobre as afirmações científicas apresentadas por ambos os lados do debate sobre as alterações climáticas. Dito sem rodeios, as opiniões do Papa sobre a ciência das alterações climáticas não têm mais peso para os católicos ou para qualquer outra pessoa do que as minhas.
Mesmo assim, a Exortação não esclarece alguns factos que cita – talvez porque quem redigiu o texto se deixou levar pelo seu anti-americanismo – enquanto omite outros relevantes para a discussão. Por exemplo, no parágrafo 72, lê-se na Exortação:
Se considerarmos que as emissões per capita nos Estados Unidos são cerca do dobro das dum habitante da China e cerca de sete vezes superiores à média dos países mais pobres, [44] podemos afirmar que uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável ligado ao modelo ocidental teria um impacto significativo a longo prazo.
Mas quando se consulta o citado relatório da ONU (p. XVII), lê-se o seguinte:
As emissões per capita variam muito entre países (figura ES.1). A média mundial de emissões de GEE per capita (incluindo LULUCF) foi de 6,3 toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) em 2020. Os EUA permanecem muito acima deste nível com 14 tCO2e, seguidos com 13 tCO2e pela Rússia, 9,7 tCO2e pela China, cerca de 7,5 tCO2e pelo Brasil e Indonésia e 7,2 tCO2e pela União Europeia. A Índia permanece muito abaixo da média mundial, com 2,4 tCO2e. Em média, os países menos desenvolvidos emitem anualmente 2,3 tCO2e per capita.
Os Estados Unidos com 14 e a China com 9,7 são factos que indicam emissões per capita aproximadamente 43% maiores na América em comparação com a China – não “cerca de duas vezes maiores”.
Alguns podem sugerir tratar-se de um erro menor. Justo. Mas o Papa foi mal aconselhado por quem foi responsável por este tratamento desajeitado de dados na Laudate Deum. Acresce que para um quadro de análise mais completo a Laudate Deum deveria ter mencionado que o mesmo relatório da ONU, na mesma página (p. XVII), também lista a China como o maior emissor de emissões de GEE em 2020. No entanto, a China não é referida, porquê?
Depois, há algumas contradições notáveis no texto. Numa secção, o Papa Francisco ataca a mentalidade tecnocrática que reduz a nossa compreensão dos problemas do mundo à tecnologia e à economia. A isto só posso dizer: “Amém, Santo Padre”. Se há algo que a resposta à pandemia da COVID nos deveria ter ensinado, é a insensatez de os governos passarem a responsabilidade pela tomada de decisões políticas a tecnocratas – no caso da pandemia, a médicos e especialistas em controlo de doenças que, sabe-se hoje, actuaram com base em investigação que se revelou altamente provisória e geralmente especulativa, e que em muitos casos, retrospectivamente, se revelou incorrecta.
A contribuição de especialistas é importante. Mas, por definição, a sua informação é altamente especializada. Esta precisa de ser integrada na ponderação de trade-offs e, sobretudo, nas considerações éticas em que os líderes políticos e os governos são obrigados a reflectir quando tomam decisões. Como diz o ditado, só porque se pode fazer algo não significa que se deva fazê-lo. Esse é o ponto central do Papa e está firmemente enraizado na lógica do Direito Natural e na fé Católica.
Mas, tendo criticado os paradigmas tecnocratas, o Papa prossegue propondo uma versão diferente da tecnocracia como forma de enfrentar as alterações climáticas. No parágrafo 35, afirma:
Falamos sobretudo de «organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a justa defesa dos direitos humanos fundamentais». O importante é estarem dotadas duma real autoridade que possa «assegurar» a realização de alguns objetivos irrenunciáveis. Deste modo dar-se-ia vida a um multilateralismo que não depende das circunstâncias políticas instáveis ou dos interesses de poucos e que tem uma eficácia estável.
No seu conjunto, isto equivale a entregar o poder a organizações globais com uma forte orientação top-down, isoladas de pressões vindas de baixo, e que, historicamente falando, geralmente se revelam muito susceptíveis aos interesses de alguns e não aos da maioria.
A embaraçosa subserviência da Organização Mundial da Saúde à China comunista durante a pandemia é disso um bom exemplo. Quanto às organizações globais já existentes cujo foco oficial são os direitos humanos, lembremos que os actuais membros do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas incluem países com registos sistemáticos e de longa data de abusos dos direitos humanos, como a China e Cuba, e outros como o Paquistão e Costa do Marfim, cujos registos nesta matéria são péssimos.
Muito mais poderia ser dito sobre a Laudate Deum. Uma nota geral que vale a pena destacar é a de que a Exortação reflete uma deterioração contínua na Doutrina Social Católica. Como eu e outros argumentamos, a Doutrina Social Católica oficial continua “a confundir o ensino da doutrina com extensos comentários de factos e probabilidades que são contingentes, variáveis e passíveis de debate legítimo entre os católicos”; falha “em sublinhar a importância de compreender como as normas negativas e positivas do ensinamento moral católico se aplicam ao abordar questões sociais, políticas e económicas”; e minimiza “o espaço para desacordos legítimos entre os católicos leigos sobre a maioria das questões [sociais, políticas e económicas]”.
Nota bene: estes não são problemas exclusivos das contribuições do Papa Francisco para a Doutrina Social Católica. Também podem ser encontrados, em graus variados, em algumas contribuições de Bento XVI e João Paulo II.
Mas termino com um elogio que também é uma sugestão. Em muitos aspectos, a declaração mais poderosa da Laudate Deum é a sua última frase. Aqui o Papa Francisco escreve: “um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo.” (LD 73).
Isso é, sem dúvida, verdade. A validade desta afirmação é mais do que comprovada pela triste história do século XX e pelo comportamento de regimes que desdenharam a religião revelada, venderam ideologias que divinizaram a raça ou classe e acabaram por massacrar milhões de pessoas. Aqui o Papa Francisco faz eco de um ponto defendido em numerosas ocasiões por Bento XVI e João Paulo II. Foi-lhe dada especial atenção pelo teólogo católico francês do século XX, Henri de Lubac, SJ, (muito admirado pelos três Papas) no seu importante livro O Drama do Humanismo Ateísta (1944).
Sugeriria, no entanto, que esta observação – tão central para os problemas do mundo actual – deveria ser um importante ponto de partida para a moderna Doutrina Social Católica sobre os nossos desafios ambientais, em vez de um complemento final. Grande parte do movimento ambientalista moderno, por exemplo, incorpora este esquecimento de Deus. Não é preciso estudar profundamente o pensamento ecológico verde para descobrir a adoração neo-pagã da natureza e o desprezo total pelos humanos que muitas vezes é perceptível. Pergunto-me: qual a razão de não haver mais bispos católicos que falem sobre isto? Do que têm eles medo?
Sem dúvida, a Igreja Católica e o mundo prosseguirão a lutar para promover o crescimento económico, que continua como a principal forma de diminuir a pobreza duradouramente, garantindo ao mesmo tempo que seja dada a devida atenção às preocupações ambientais genuínas. Mas se há algo que a Laudate Deum demonstra, é que a Igreja precisa de repensar toda a sua abordagem a este tema, para que possa dar uma contribuição distinta a tais discussões que se baseiam profundamente nas tradições Católica e do Direito Natural. O próprio Papa Francisco disse que a Igreja não é uma ONG e advertiu, com razão, contra a tentação de se tornar nada mais do que “uma ONG compassiva”. Sendo esse o caso, dever-se-ia abster de falar ou agir como tal.
Artigo publicado pelo Observador em 2023/10/07, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.