Bússola desregulada

José Meireles Graça                                                                                                                       .

A Bússola para a Competitividade ameaça de torrar 800.000 milhões que tarde ou cedo sairão dos bolsos dos contribuintes convém perceber o que é que esta dinâmica gente está a engendrar.

Quando o país faliu em 2011 a dívida pública andava pelos 114% do PIB, ligeiramente mais do que a que é hoje a da França, que ocupa o terceiro lugar no pódio dos países da UE mais endividados, a seguir à Grécia e à Itália.

Não há qualquer risco, porém, de intervenções. Nem a Itália nem a França podem ser tratadas como o foi Portugal, pela mesmíssima razão de que o cliente de bancos que incumpra em valores modestos tem um problema mas se os valores forem gigantescos quem tem o problema é o banco.

No passado do continente europeu sempre as entidades políticas que vieram a constituir países, com fronteiras que aliás variaram muito ao longo do tempo, combateram umas com as outras. E, quando não combatiam, batiam-se com soluções diferentes para cada país ou região, consoante quem a ocupava e quem a dirigia. Há quem defenda, com bons argumentos, que foi esta diversidade uma justificação da maior importância no relevo e ascendência que este continente veio a ter sobre os outros. À escala de países, o mesmo fenómeno que nas economias de mercado: é a concorrência que mostra ser um dos factores do progresso material.

A salutar lição que as falências de Portugal e da Grécia encerravam foi, felizmente, percebida em Portugal (até mais ver), mas não parece que faltem países onde o eco das desgraças lusas não chegou – nos 27 já há 4 países, além daquele dos queijos e das malas Vuitton, que alegremente nos ultrapassaram em matéria de endividamento. Se há 5 piores do que nós no ranking da vergonha, isso quer dizer que há 21 melhores, e destes 14 estão abaixo dos 60% do PIB que arbitrariamente foram definidos como limite – o campeão é a Estónia, com cerca de 20% Coitadinhos, era mandar para lá alguns dos nossos socialistas e social-democratas e durante uns anos o Estado Social levaria um grande oupa.

De endividamento estamos conversados, e de guerras não estamos, mas acreditemos que com tempo a maioria dos países o reduzam, excepto se uma Covid 37 aparecer por aí que forneça uma oportuna desculpa para parar tudo. Onde verdadeiramente a porca torce o rabo é no crescimento económico: a Europa descobriu que o oceano que conta agora é o Pacífico e já não o Atlântico, a Ásia cresce e a América também, tanto antes da pandemia como depois, muito mais do que a economia europeia, a tal ponto que os países do Euro já só representam 15% ou à volta disso do PIB mundial. Dos grandes países europeus a França é um cadinho de perturbações sociais, a Itália ainda não dá indícios seguros de o melonismo não ir fazer marcha-atrás e o motor alemão, se não está gripado, apresenta sérias folgas nos pistões, a cabeça dando sinais de ter as válvulas descomandadas e a centralina errática. Tudo imagens, quem quiser números que os procure que o quadro é negro até para optimistas.

Draghi, o homem que in illo tempore acabou com as pretensões de o BCE se preocupar apenas com o endividamento e a inflação, inventando o expediente de facilitar a vida a toda a gente e engendrando um mundo de maravilha onde nenhum país vai à falência nem tem por isso de reformar coisa alguma, e produziu um volumoso estudo, que ninguém leu, explicando por que razão a Europa já era e o que fazer para voltar a ser.

Na Comissão Europeia, a ver o chão fugir debaixo dos pés, era mesmo do que estavam a precisar – de um estudo. E a presidente do areópago burocrático, von der Leyen, não perdeu tempo e fez um programa ambicioso que, realizado, torcerá os Americanos de inveja, confundirá os Chineses e levará os Europeus a reganharem confiança em si mesmos e no futuro.

É a Bússola Para a Competitividade. E como algures lá no meio há a ameaça de torrar 800.000 milhões que tarde ou cedo sairão dos bolsos dos contribuintes convém perceber o que é que esta dinâmica gente está a engendrar. Não traduzo o Inglês porque não há quase ninguém que não o fale ou não tenha a mania de que o fala, de modo que me limito a traduzir do burocratês para a língua de gente comum como eu. É isto:

Our business model has basically relied on cheap labor, from China presumably, cheap energy from Russia and partially outsourcing security and security investment, ‘she told a press briefing. These days are gone.” Exportamos a poluição, para grande alegria dos ambientalistas, para fora da Europa, o que foi um claríssimo erro que não reconhecemos (o que lá vai lá vai, desculpem lá qualquer coisinha), mas não temos a menor intenção de abandonar a retórica lunática daquela gente das causas do ambiente, das bandeiras e da caspa avermelhada. Se tivéssemos, íamos a correr permitir a exploração de petróleo através de fracturação, coisa que temos deixado para aqueles primitivos Americanos, e iríamos fazer de novo centrais atómicas, deixando porém em paz aquelas regiões que afirmam orgulhosamente estar livres de tal flagelo como, salvo erro, Santo Tirso e vários outros concelhos. Quanto à segurança, a América bem podia continuar a suportar a parte de leão dos custos e deixar-nos a nós repoltrearmo-nos na superioridade do nosso Estado Social. Mas o que não pode ser tem muita força.

Bowing to European Union capitals’ calls to slash red tape that hampers businesses, she’s promising to make an “unprecedented effort to produce simpler rules” and speed up administration”. O quê, as capitais europeias fazem pressão para diminuir obstáculos burocráticos à liberdade de empreender? E por que razão não opuseram obstáculos ao acumular demencial de regras e procedimentos e precisam que lhes digam como devem reformar? Porque, está bom de ver, na UE sabem; e nas capitais ignoram. E, na mesma UE, não sabiam antes; mas vão passar a saber agora.

But her policy roadmap stresses that governments will have to step up since ‘many key levers, from taxation to labour markets to industrial policies, are largely or partly in the hands of EU governments’ and they should coordinate national reforms and investment via a Competitiveness Coordination Tool”. Ora aí está, há países que não são fiscalmente competitivos e outros que são, as políticas industriais variam e a legislação laboral também, de modo que o melhor é passar tudo para Bruxelas, que há lá uns moços esclarecidos que ninguém conhece e são por isso independentes de pressões de eleitorados e outras maçadas. Com isso se garantirá que nos afundamos todos abraçados uns aos outros, ou nos salvamos uns melhor e outros pior – como antes, mas sem que ninguém seja responsável por coisa alguma.

Energy is a big focus as companies complain that high power prices, which soared after Russia invaded Ukraine, make it difficult for them to compete with other parts of the world. The Commission pleads with governments to step up investments in Europe’s power grids and storage facilities to enable the switch toward more renewable power sources”. Ah bom, já arranjamos um problema de todo o tamanho por exportar poluições e maçadas, importando petróleo e gás. Vamos agora substituir a extinta barateza das importações pela careza das produções alimentadas a subsídios. Von der Leyen tem nisto uma grande fezada.

One big problem with von der Leyen’s overarching vision is the limited funding available for new investment. Even large countries like France and Germany are struggling with debt and deficits, a situation that trade tensions with the United States and China could worsen”. O autor do artigo está na sem-razão: Do que se está a falar é de investimentos públicos, ou privados com forte apoio público. De modo que com financiamentos europeus e umas puncões no BEI as limitações dos Estados ficam ultrapassadas. Pode perguntar-se de onde vêm os recursos para a própria UE satisfazer o serviço das suas dívidas. E é aqui que entra o factor religioso: Com as Virgens de Czestochowa, a de Lourdes e a de Fátima, às quais as terras increias da Ásia e da América não têm acesso, fica o problema resolvido.

The plan is wide-ranging, picking up on criticisms from Mario Draghi’s competitiveness report of a range of policy areas where the EU is slow or fragmented. It also touches on social issues usually outside of the Commission’s purview by asking governments to open up labor markets as the working population ages and pushing for action to address failings in education where children’s math and reading skills have worsened”. Há nestes dois parágrafos, e no que o Relatório Draghi recomenda nestas matérias, muito de positivo? Há. O que não há é a ideia de que as quatro liberdades (de circulação de pessoas, bens, capitais e serviços) são um adquirido que não precisa de ser complementado por governos supranacionais irresponsáveis. Os quais fatalmente tendem a alargar os seus poderes e cujo anonimato e irresponsabilidade garantem que a tábua-rasa que fazem de realidades muito diversas, e o seu pendor estatista e intervencionista, são a certeza de que a desejada aceleração do crescimento não poderá ser mais do que o progresso do retrocesso.

Lembram-se do PRR, que ainda arrasta os pés? Agora é que ia ser, íamos melhorar o desenvolvimento económico e social do país de forma justa, equitativa e sustentável.

Deve ter melhorado qualquer coisa, com o sector público a abocanhar a parte de leão, e supõe-se que deve estar a ser equitativo e imensamente justo.

Quanto à sustentabilidade, depende de vir o próximo programa com a próxima fantasia. Como a Bússola.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/02/14, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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