Alguém tem que ceder

Beatriz Soares Carneiro                                                                           .

Se tivéssemos coragem e rasgo, ganharíamos com um mercado menos regulamentado, mais eficiente e mais propício a ver nascer alternativas que nos tornariam menos dependentes das Big Tech americanas.

Desde a (re)eleição de Donald Trump, como presidente dos Estados Unidos, que o mundo vive em sobressalto e a Europa num frenesim particular. As ondas de choque do terramoto de 5 de Novembro ainda não pararam, parecendo trazer uma alteração substantiva da relação transatlântica e da situação geopolítica em que vivíamos. Ondas essas que se multiplicam pelas mais diversas áreas, com réplicas mais ou menos esperadas para várias políticas europeias, seja na defesa, na segurança, na energia, nas migrações e no digital. Tal é o vórtice em que estamos que, para mim, é ainda muito cedo para percebermos o que está a acontecer e qual é o novo tabuleiro em que iremos jogar e com que regras, aconselhando a prudência, mais análise e menos opinião, mais perguntas e menos certezas.

 

Se isto é genericamente válido, na área do digital parece, no entanto, ser já bastante evidente qual é jogo que os Americanos estão a jogar, no qual parece que os interesses dos grandes players, as Big Tech, e da nova Administração estão alinhados numa série de aspectos, sobretudo nos mais fundamentais, como seja uma defesa mais musculada dos interesses das tecnológicas americanas no plano global. E isso coloca, Estados Unidos e Europa, em lados opostos, com fracturas mais ou menos profundas entre eles, em temas como o fact checking, o desenvolvimento da Inteligencia Artificial (AI), a regulação das plataformas digitais, a protecçao de dados, entre muitos outros.

 

Desde as semanas que antecederam a eleição de Trump e, em especial, nos dias à volta da sua tomada de posse, as movimentações dos “grande patrões do digital” começaram a deixar claro que a defesa dos seus interesses vai ser uma guerra que a nova Administração Americana está disponível – diria, até, ansiosa – por comprar com os Europeus. Dos grandes, todos tiveram lugar de destaque no Capitólio, no dia 20 de Janeiro: Jeff Bezos (Amazon), Elon Musk (X Corp), Mark Zuckerberg (Meta), Sundar Pichai (Google/Alphabet), Tim Cook (Apple) e Sam Altman (OpenAI). E todos eles, de uma ou outra forma, foram dando sinais de alinhamento ou de aproximação à nova administração e foram deixando críticas à regulação Europeia, aos mecanismos que consideram de censura e à forma como têm sido tratados pelos decisores políticos Europeus.

 

A estes juntam-se ainda os gigantes da produção de conteúdos que também estão a reposicionar-se e a reduzir de forma mais ou menos discreta os compromissos com as políticas DEI (Diversity, Equity, and Inclusion). A Disney, a Warner Bros., a Paramount Global, a Comcast (Universal Pictures / NBC Universal) e até a Netflix, uma pioneira na diversidade e inclusão, todas estão a rever prioridades e a alinhar estratégias com os novos tempos. Mais importante ainda, todas estas empresas americanas vêem com bons olhos as ideias de menos regulação, mais America First e mais incentivos ao desenvolvimento da Inteligência Artificial, sem grandes entraves regulatórios. Tudo políticas defendidas por Trump. E, sobretudo, gostam de uma administração que as defenda daquilo que muitas delas sentem como ataques dos decisores políticos Europeus e uma espécie de “caça à multa” versão regulamento europeu.

 

Do lado da administração, eleita numa plataforma America First e com uma visão particular sobre o comércio internacional, esta aliança não causa espanto. Se olharmos para os números e virmos que os serviços digitais (software, cloud, publicidade online, streaming) representam cerca de 40 a 50% das exportações de serviços dos Estados Unidos para a Europa, e no comércio de bens, onde os EUA têm um déficit comercial de US$ 235,8 bilhões com a Europa, os produtos e equipamentos tecnológicos, como sejam os iPhones, os servidores e hardware representam 15% das exportações para a Europa, tornam-se claros os motivos desta nova aliança entre bilionários e administração. Não é um governo de oligarcas, mas é uma forma de projectar a América no mundo, através de produtos e serviços que têm consumidores literalmente em todo o planeta e representam uma fatia relevante da balança comercial americana.

 

Esta também parece ser a forma como JD Vance está a ver a relação entre os Estados Unidos e Europa, na área da tecnologia digital. Na sua primeira vinda ao velho continente como Vice-Presidente, primeiro em Paris e depois em Munique, não se poupou a críticas à forma como acha que UE impede, com a sua regulação, o desenvolvimento de novas ferramentas de AI (Paris) ou, de forma mais bruta, como entende que a UE está a usar disposições legais, nomeadamente o Digital Services Act (DAS), para limitar a liberdade de expressão e impor a censura.

 

Se já era evidente para os observadores atentos que havia uma clivagem, depois das palavras de Vance, tornou-se inevitável assumir que é precisamente aqui que os caminhos dos americanos e dos europeus se dividem. É como o filme do início dos anos 2000, com Jack Nicholson e Diane Keaton, ambos cinquentões, com feitios e hábitos antagónicos, que têm que navegar as diferenças numa relação em que, obrigatoriamente, alguma coisa terá que ceder, porque se tudo se mantiver como é os protagonistas acabam sem qualquer hipótese romântica. Mas o que no filme Alguém Tem Que Ceder servia de premissa para uma RomCom, no caso da relação das Big Tech com os decisores e reguladores Europeus pouco há de romance ou de comédia. Resta a relação difícil.

 

E neste ponto vale a pena recordar o vídeo de Zuckerberg, no qual anunciava o fim do fact-checking nas suas plataformas mas que, ainda mais importante do que isso, nos últimos minutos, dizia: “vamos trabalhar com o Presidente Trump para fazer frente aos governos de todo o mundo. Eles estão a perseguir empresas americanas e a pressionar para censurar mais. Os EUA têm as protecções constitucionais mais fortes do mundo para a liberdade de expressão. A Europa tem um número cada vez maior de leis, institucionalizando a censura e dificultando a construção de algo inovador[1].

 

Esta mensagem é, tal como a de JD Vance em Paris e em Munique, dirigida diretamente à União Europeia, sem rodeios ou ressalvas, e atinge onde dói mais: a falta de inovação e de competitividade e o excesso de regulação. E aqui parece que a Administração Americana e os CEOs das Big Tech estão, novamente, francamente alinhados na forma como olham para o velho continente: onde as empresas americanas inovam, a UE regula. Onde as empresas americanas arriscam, a UE cria barreiras e impõe condições, muitas vezes ao arrepio da neutralidade tecnológica. Onde os Estados Unidos criam valor para biliões de consumidores em todo o mundo, a Europa protege o seu quintal. Infelizmente esta não é uma constatação nova, nem sequer uma crítica sem fundamento. Temos, inclusivamente, uns quantos relatórios recentes, com nomes sonantes como autores, a dizer quase o mesmo. Mas agora o aviso vem do outro lado do Atlântico, e de alguém que “ameaça” usar a força da Administração Americana numa luta contra a regulação europeia do digital e dos excessos que entende prejudicarem de forma desproporcional as empresas americanas.

[1] “We’re going to work with President Trump to push back on governments around the world. They’re going after American companies and pushing to censor more. The US has the strongest constitutional protections for free expression in the world. Europe has an ever-increasing number of laws, institutionalizing censorship, and making it difficult to build anything innovative there.”

Sendo Trump um Presidente que se apresentou com uma agenda America First, talvez seja de acreditar que, seja através de tarifas, seja usando a Nato, a retaliação contra o que sentem como um ataque a empresas americanas, irá mesmo chegar.

E isto é problemático, quando grande parte do trabalho dos últimos anos da UE nesta área se centrou precisamente no Digital Services Act (DSA), no Digital Markets Act (DMA), no Data Act e que agora aposta no AI Act. E se nada disto serviu para fazer nascer Amazons, Googles, Metas ou Netflix europeias, pelo menos serviu para nos iludirmos com a ideia de que, ao regularmos, estávamos a fazer alguma coisa. Pelo menos, que mais não fosse, estávamos a proteger o nosso mercado e os nossos consumidores.

 

Do lado de cá do Atlântico, assistimos a tudo isto e continuamos, no mesmo ponto, a olhar para nós como “os virtuosos” face a um mundo de perigos e incerteza. Afinal, se os Europeus querem moderação de conteúdos online não é porque gostam de censura, mas porque querem proteger a democracia do perigo da desinformação. Se querem regras para a operação das plataformas digitais, não é porque querem alterar o seu modelo de negócio ou limitar a sua actuação no mercado europeu, mas porque estão a proteger os consumidores dos riscos do abuso de posições dominantes. Se aprovam um exigente AI Act não é porque querem limitar as utilizações futuras de uma tecnologia nascente, mas porque, mais uma vez querem proteger os europeus dos perigos imensos, muitos deles ainda desconhecidos, de uma tecnologia nova e profundamente disruptiva. A forma como olhamos para as oportunidades, é sempre a do medo e da construção de barreiras de protecção. E também aqui vemos a tal transformação da Europa das Liberdades na Europa da Segurança, sobre a qual escrevi aqui no Observador, em Maio do ano passado.

Onde as empresas americanas estão a ver oportunidades de negócio, investimentos gigantescos em tecnologias disruptivas, possibilidade de inovar num mercado global, e encontram uma Administração que as irá defender num mundo que é hoje hostil à sua hegemonia, os Europeus oferecem barreiras, imposições, medos ou restrições. E pior ainda, empenham-se em soluções desenhadas centralmente, inovação programada e empreendedorismo condicionado pela regulação, com programas de financiamento desenhados a regra e esquadro. Estes são modelos opostos e impossíveis de compatibilizar sem cedências. E lamento, mas neste caso, o modelo europeu não é o melhor, o que mais defende um mercado aberto e livre e o que mais fomenta a inovação.

Não pretendo aqui determinar se a actual administração americana defende o que defende em matérias de plataformas online e desenvolvimento de ferramentas de AI com boas ou más intenções. Isso é irrelevante, porque os factos são factos, independentemente das intenções. E o facto é que temos neste momento uma aliança entre as grandes empresas tecnológicas e a administração Trump contra o excesso de Regulação europeu, que ambos consideram estar a prejudicar os interesses americanos e as condições perfeitas para um boom de inovação tecnológica nos Estados Unidos.

Também não vou ser ingénua e achar que essa aliança tem o interesse dos europeus em mente. Acho que é evidente que não é isso que a motiva. Mas pode ter como consequência positiva não planeada, acordar-nos e ajudar-nos a mudar de vida. E acontecendo isto num momento em que há tantos avisos internos de que a UE tem um problema de competitividade o qual, em grande medida, decorre do excesso ou desadequação de regulação, nomeadamente em matéria de protecção de dados, talvez não valha a pena comprar uma guerra cega com as empresas americanas e apostar, antes, em mudar o nosso modelo interno para o tornar mais competitivo globalmente, com regulação mais simples e mais focada no essencial, que é deixar o mercado funcionar. Até para o desenvolvimento de alternativas europeias, porque essa é a consequência natural de mercados abertos, livres e sem excesso de regulação: o aparecimento de concorrência. Geralmente isso não acontece por determinação estatal ou regulamentar.

Se tivéssemos coragem e rasgo, poderíamos, nesta questão particular, apostar em eliminar red tape, e assim, sem abandonar o fundamental dos nossos valores – os mercados livres e concorrenciais –, saíriamos nós a ganhar, com um mercado muito menos regulamentado, muito mais eficiente e muito mais propício a ver nascer alternativas que nos tornariam menos dependentes das Big Tech americanas que a UE tanto gosta de criticar.

A outra alternativa, é declararmos guerra às Big Tech americanas, ao seu modelo, aos seus valores e à sua recente aliança com Trump, e apostarmos em viver sem os serviços da AWS, da Google ou da OpenAi até que nasçam, por decreto ou por milagre, os campões europeus, homegrown, que os vão substituir. Mas eu não estou a ver os Europeus a abdicar do Instagram, da Netflix ou da Amazon com a mesma facilidade com que boicotaram a Tesla. É que carros há muitos, e os Europeus até dão dez a zero aos Tesla, mas ainda não há uma Netflix europeia.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/03/14, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

Share This
Scroll to Top