Telmo Azevedo Fernandes .
Nos Estados Unidos da América o total das importações equivaleu a 14% do Produto Interno Bruto em 2024, um dos mais baixos rácios de qualquer país desenvolvido, sendo que as importações que tiveram origem na China representaram apenas 1,8% desse mesmo PIB. Apesar dos factos, os responsáveis políticos têm definido políticas públicas com base na percepção prevalente na sociedade americana de que “tudo vem da China”.
Apesar de os EUA serem o segundo maior exportador mundial, o país regista consistentemente défices comerciais. A situação é comumente explicada por um suposto crescimento do nível de endividamento dos americanos. Porém, ainda que o número de agregados familiares tenha aumentado 86% entre 1975 e 2024, o património líquido médio real das famílias mais que triplicou durante o mesmo período.
Lá como cá, existe também a ideia generalizada de que estamos perante uma crise de desindustrialização, com os nossos tecidos industriais a definharem por efeito nefasto da globalização e da abertura internacional do comércio. Porém, mantendo o olhar nos EUA, a produção e capacidade industrial americana estão em máximos históricos e, simultaneamente, não há memória de um PIB per capita tão elevado. Em termos medianos, as famílias têm tido rendimentos crescentes, resultado da melhoria da produtividade laboral na indústria, que se traduz no facto de cada trabalhador americano gerar, por exemplo um valor-acrescentado anual superior em 120.000 dólares ao de cada trabalhador chinês.
Obviamente que a concorrência internacional tem também impactos negativos e pode causar disrupções sociais que não são despiciendas, em particular pelo aumento do desemprego. A região do Nordeste americano, dos Grandes Lagos e do Midwest é normalmente apontada como um exemplo disto mesmo, mas como procurei demonstrar em artigo intitulado «O Rust Belt, a China e a “Nova Direita”», o declínio económico da região é em larguíssima medida resultado de outros factores e, contrariamente às ideias feitas, por causa do intervencionismo estatal e da tentativa de protecção da concorrência.
Os dados acima referidos servem para ilustrar algumas perplexidades e inconsistências em muitos dos raciocínios, comentários e análises que vão sendo feitas no espaço público a propósito do vórtice noticioso das guerras comerciais, aceleradas de forma caótica, pelo menos até agora, por Donald Trump.
As dinâmicas do comércio internacional são complexas, mas como os défices da balança comercial resultam primeiramente de factores macroeconómicos, ajudará termos presente a definição básica de cálculo da actividade económica num determinado período: PIB = C + G + I + (Exp – Imp). Denominando “C” consumo privado, “G” consumo público e “I” investimento. Daqui retiramos que o saldo da balança comercial é função do nível de poupança e investimento de um país: Poupança Interna – Investimento = (Exp – Imp).
Um défice da balança comercial regista-se sempre que o valor do investimento seja superior ao da poupança nacional. Ou seja, a abstração contabilística chamada «défice comercial» equivale a dizer que, na prática e na realidade, estrangeiros estão a financiar um padrão de vida e um nível de actividade económica para o qual o país não tem internamente capital suficiente.
Essa entrada de capital estrangeiro faz-se através de investimento directo, participação no capital de empresas, aquisição de activos imobiliários, entre outras vias. Mas o défice comercial apenas se converte em dívida externa se e quando os estrangeiros emprestam dinheiro, frequentemente pela compra de obrigações corporativas ou de títulos de dívida pública.
Evidentemente, os agentes privados podem não obter os resultados esperados dos investimentos alavancados em dívida, mas eventuais problemas daí decorrentes responsabilizam directamente e apenas os intervenientes nessa relação, sendo indiferente para o caso a origem geográfica dos capitais.
O défice da balança comercial não é, todavia, inócuo nos casos em que a despesa do Estado é financiada pela via de entrada de capital estrangeiro. Sobre esta dívida respondem todos os actuais e futuros contribuintes e um incumprimento dos compromissos creditícios ou ineficiências de alocação de recursos pelos decisores públicos terá impacto global na economia.
É apenas sobre esta a componente pública da dívida externa que se coloca a questão da sustentabilidade dos défices comerciais. O problema não está em si mesmo no facto de as exportações representarem um menor valor do que o das importações totais, mas sim nos défices orçamentais e na dívida pública que para ele contribuem.
A nuance é absolutamente substancial para que não se perca o foco na identificação do verdadeiro problema, nem se promovam políticas contraproducentes. Por exemplo, querer eliminar os défices comerciais e simultaneamente procurar atrair investimento estrangeiro é inconsistente. Como vimos, os défices comerciais e os excedentes de capital são duas faces da mesma moeda. É recomendável por isso aos apologistas das “melhorias” da balança comercial terem prudência naquilo que desejam.
A solução para um nível de endividamento externo sustentável não virá do valor das exportações ser superior ao das importações. Trocas comerciais livres são uma forma de as pessoas organizarem a sua vida quotidiana na prossecução dos seus interesses. Políticas públicas no âmbito do comércio internacional são normalmente ineficazes e refletem em larga medida uma visão mercantilista que faz o Estado intrometer-se nas relações voluntárias transfronteiriças dos indivíduos e empresas.
Caso se pretenda alterar o nível de poupança do país, a única intervenção pública saudável e eficaz será através da redução da despesa pública e garantindo superavits orçamentais. Manter políticas orçamentais que não reduzem a despesa nem a dívida pública, servem apenas para retirar à economia privada a sua capacidade de poupança e investimento.
Ajudaria ainda ter um regime fiscal neutro entre o consumo presente e a poupança para consumo futuro, tratando todas as atividades económicas de forma igual sem distorções no mercado provocadas artificialmente por políticas públicas. Para expurgar a componente “tóxica” do défice comercial, no fundo, o Estado deverá reduzir significativamente o seu âmbito de actuação.
A narrativa da necessidade de exportar mais do que o que se importa ajuda, na prática, à manutenção e alargamento dos gastos das administrações públicas, fazendo crer que a dívida externa acumulada resulta da fraca actividade das empresas e do consumismo dos particulares e não dos recursos que o estado lhes retira e que, de outra forma, serviriam para aumento da poupança e investimento.
Ou seja, o Estado não só gasta recursos em demasia e leva a cabo investimentos não reprodutivos e sem racionalidade económica, como quase consegue fazer passar a ideia de que apesar de os privados serem espoliados por via fiscal (incluindo tarifas aduaneiras), acabam ainda assim por ser estes últimos os responsáveis pelo fraco nível de produção de riqueza, investimento e poupança, enfim, como se o sector privado fosse “culpado” pelos défices da balança comercial.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/04/18, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.