A tarifa do nosso descontentamento

José Meireles Graça                                                                    .

Os problemas da dependência com implicações geostratégicas e o da dívida pública, requeriam uma abordagem paciente e cirúrgica, não esta motosserra desgovernada, cujos estilhaços vão fazer ricochete.

Pode-se ocupar menos proveitosamente o tempo não lendo Hillbilly Elegy. Não será, literariamente, uma obra brilhante, mas retrata com fidelidade e sem intenções panfletárias uma região deprimida e uma classe social desestruturada (com perdão do adjectivo).

As indústrias que conformaram o modo de vida da região fugiram para o estrangeiro, deixando atrás manchas de desemprego de gente que não pôde ser completamente reabsorvida, famílias desfeitas, problemas de difusão de droga, tudo num pano de fundo da maneira de ser americana, tradicionalmente violenta.

Ganharam os consumidores americanos, que passaram a ter acesso a produtos mais baratos, os donos das empresas, que conservaram ou aumentaram os seus lucros, disponíveis para novos investimentos na mesma ou noutras áreas, e os trabalhadores estrangeiros, que puderam melhorar o seu nível de vida.

Coisas da liberdade de comércio: No conjunto, há progresso material e, sem ela, há arrastar de pés. Mas mesmo que estes novos pobres americanos apenas o sejam estatisticamente (têm carros, ainda que em segunda ou terceira mão, à porta, e atocham-se de junk food que os faz obesos, o que tudo os faria serem considerados milionários em muitos países do Mundo) sentem-se, com razão, à margem.

Também sou de uma região que já foi um centro do linho, dos curtumes, que teve a maior fábrica de sapatos do país, de brinde porque o centro principal nem era aqui, e várias têxteis de dimensão apreciável, além de inúmeras médias e pequenas, bem como cutelarias. Das grandes, uma gabava-se de ser a maior em têxteis-lar da Europa, pelo que é bem possível que estivesse no quarto ou quinto lugar.

A maior parte disso foi para o galheiro, completamente no caso dos dois primeiros sectores. E todavia a indústria reinventou-se: diversidade na oferta, prazos mais curtos, séries mais pequenas, empresas de menor dimensão e mais ágeis, modernização do equipamento, além de uma explosão na oferta de serviços. De modo que crise social não há, o que há pelo contrário é falta de mão-de-obra, o que leva a recurso crescente a imigrantes.

Espertos, estes vimaranenses, e burros aqueles americanos? De todo: indústrias pesadas, quando emigram, deixam um buraco, não sendo de esperar que o antigo operário, que sabia lidar com um forno ou montar um tablier e tem 40 ou 50 anos, aprenda de repente a sentar se diante de um computador de uma linha automatizada de não sei quê ou a prestar serviços sofisticados de grande valor acrescentado.

Esta gente, infelizmente, vota, e quer pouco saber de teorias económicas que provam que o progresso vem da concorrência e da eficaz afectação de recursos; mas quer muito da dignidade do trabalho que desapareceu, e dos rituais da antiga comunidade que se esfrangalhou. De modo que pode até comprar artigos made in China, mas vai acumulando uma surda revolta contra uma América que não entende e que está distante dos fulgores dos anos do pós-guerra, e um ódio crescente ao Chinês e ao Mexicano, e de maneira geral ao imigrante, ao economista que lhes diz que não valem nada, ao intelectual e político que com sobranceria lhes desprezam as crenças religiosas e lhes tentam enfiar pela goela abaixo as doutrinas woke.

Estes, os deplorables, como lhes chamou a deplorável Hillary Clinton, fizeram inclinar a balança a favor de Trump, que tem paulatinamente vindo a responder aos anseios de quem lhe deu a vitória.

Daqui as taxas alfandegárias que lançaram o mundo em convulsão, ainda que não só por isto: o bom do Trump quer de uma assentada resolver o problema da dívida pública (que é maior do que a portuguesa e que não dá quaisquer indícios de vir a diminuir), da ameaça geoestratégica percebida do risco de défices permanentes da balança comercial, e da dependência em materiais críticos para uma autonomia militar e industrial ou até para artigos de consumo sofisticados.

Conta com um aumento da receita fiscal e regresso de empresas americanas que se expatriaram, ou estrangeiras que se queiram estabelecer para aproveitar sem penalização de taxas o mercado americano.

Infelizmente, a generalidade dos economistas, consabidos magos destas coisas, acha isto uma loucura que não vai ajudar, pelo contrário, os Americanos, ainda por cima prejudicando o resto do mundo. E eu, que bem gostaria de discordar daquela ilustre agremiação, tendo a dar-lhe razão, ainda que nem sempre pelos mesmo motivos: Não se pode parar a evolução natural das coisas e da economia, abandonar uma fábrica para a estabelecer noutro lado onde a pastagem seja mais verde é um caminho imensamente mais fácil do que o percurso inverso, a fábrica que desapareceu há décadas já não existe porque a evolução tecnológica a transformou noutra coisa, e o que a América fez não é na substância diferente do que fizeram outras economias de sucesso. Fizeram ou estão a fazer: a China já exporta empresas para países de mão-de-obra mais barata.

Pode ser que o progresso científico e tecnológico venha no futuro a modificar os dados deste problema – não sabemos; e também pode ser que a evolução demográfica altere tudo porque a China (o principal “inimigo”) não faz crianças em número suficiente, de modo que o séc. XXI talvez não seja deles.

Resta que os outros problemas, isto é, o da dependência com implicações geostratégicas e o da dívida pública, requeriam uma abordagem paciente e cirúrgica, não esta motosserra desgovernada, cujos estilhaços vão fazer ricochete; e o segundo não será resolvido com a imaginária receita acrescida das taxas alfandegárias, antes com a horrível maçada de deixar de ter défices. O que Trump, aliás, não esqueceu, daí o DOGE, os violentos cortes na USAID, a exigência da divisão equânime das despesas entre os vários países da NATO, e o planeado abandono de agências internacionais minadas por burocratas e esquerdistas sortidos. Mesmo aqui, porém, o esbracejar e as pressas não são bons conselheiros: o acumular de erros e injustiças reais (não necessariamente as gritadas pelos telhados da comunicação social de lá e de cá) podem fazer deitar fora o clássico menino com a clássica água do banho. Destes erros um, recente, é a ameaça a universidades americanas de retirar apoios no caso de estas se recusarem a substituir a ideologia woke e o anti-judaísmo não pela liberdade crítica, essencial à vida universitária, mas pelas posições de Trump em tais matérias. Não excluo que Vance, o VP autor do livro que mencionei a princípio, já esteja a pensar que o que é demais é erro.

Em suma: Poderá Trump recuar na desastrada iniciativa da guerra comercial, embrulhando o recuo na retórica de ter sido tudo planeado a benefício de algumas vantagens?

Seria bom. Porque, como já disse tantas vezes, a personagem é detestável a vários títulos, excepto por ser depositário de algumas ideias de direita que outras direitas não têm força anímica para combater: o estatismo, a engenharia social, a limitação da liberdade de expressão – entre muitas outras.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/04/18, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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