A extinção dos Bancos Comerciais? (Parte II)

Ricardo Dias de Sousa                                                                                                                                          .

Um sistema bancário solvente necessita simultaneamente controlar o risco da sua base de depósitos e ser lucrativo.

Na primeira parte deste artigo, tentamos explicar o porquê de os bancos, em teoria, serem um negócio inerentemente frágil. Em resumo: porque tratam os depósitos à ordem como passivo de longo prazo. Nesta segunda vamos tentar perceber o porquê de a sociedade coexistir com essa fragilidade.

A fragilidade inerente do sistema bancário é tolerada porque se entende que os bancos prestam um, ou vários, grandes serviços à sociedade. Estes serviços podem resumir-se a: por um lado, o processamento de quantidades ingentes de pagamentos entre os agentes económicos e, por outro, a agilidade na concessão de crédito, em particular a prazos a que os outros agentes não estariam dispostos a suportar. Estes serviços retroalimentam-se: é o primeiro aquele que vai permitir o segundo, canalizando grande parte desses saldos de caixa, e o segundo o que permite o primeiro, ao manter o banco suficientemente rico para que as pessoas continuem a confiar nele. Poderá dizer-se que os bancos resolvem um problema de actuação colectiva, já que permitem à sociedade investir a um prazo superior ao que cada indivíduo estaria suposto a assumir para si, incrementando tanto a produção de bens como a segurança dos próprios investimentos.

Esta formulação baseia-se em demasiados pressupostos para ser totalmente convincente (que exista uma decisão colectiva; que investir a longo prazo seja necessariamente melhor que investir a curto prazo – ou que consumir; que a regulação do sistema é uma garantia da segurança do mesmo; que a expansão artificial do crédito não distorce o sistema de preços; que os agentes económicos não são induzidos em erro sistemático pela distorção do preço de oferta do dinheiro – as taxas de juro; que a substituição de trabalho por capital é sempre benéfica; que a estrutura de produção não se fragiliza com a expansão do crédito, etc., etc.), mas, em geral, e considerando as respostas típicas dos governos às crises financeiras, é inegável que a crença de que sem os bancos não seria possível investir a longo prazo por não existir poupança suficiente está bem enraizada nas sociedades modernas, e este não é um razonamento necessariamente falso. Simplesmente incompleto.

Do exposto até aqui, poderíamos intuir que financiar investimentos com depósitos é um comportamento incorrecto, até porque está na raiz da falência de muitos bancos, entre eles, do SVB neste último mês de Março, e constitui a ameaça sistémica uma espada de Dâmocles que pende constantemente sobre as sociedades modernas. No entanto, o desfase entre depósitos e empréstimos é, há séculos, um componente básico da gestão do risco dos bancos. Descartá-lo como erro de principiante, quando é uma prática secular e medular da indústria, não faz jus ao problema e arrisca uma solução precipitada para um problema complexo.

Grande parte do dinheiro que circula na economia nunca sai dos bancos. Aliás, é criado pelos próprios bancos. Muitas vezes não sai sequer do mesmo banco. As corridas aos depósitos são acontecimentos esporádicos, mesmo se potencialmente letais, e os depositantes valorizam os outros serviços que os bancos lhe prestam, nomeadamente a segurança e a facilidade de movimentar o dinheiro. Que o banco tenha um historial do cliente também facilita a obtenção de crédito quando necessário e o custo de mudar de banco é tradicionalmente elevado, pelo que os depositantes são normalmente imunes ou, pelo menos, pouco reactivos a variações nas taxas de juro. Nalguns casos até se pode falar em relação inversa dos depositantes com as taxas de juro, já que anunciar um aumento na remuneração dos depósitos por parte de um banco, pode até ser percebido como um aumento do risco da entidade e ter o efeito de afugentar depósitos em vez de os captar.

Poderíamos afirmar muito genericamente que os bancos comerciais investem recursos numa rede de balcões como forma de captar clientes fiéis com pouca ou nenhuma sensibilidade à variação das taxas de juro. Isto significa que fazem swaps de taxa fixa por taxa variável. Quer dizer, pagam um custo fixo sob a forma da manutenção da rede e investem à taxa variável vigente no mercado para ganhar a diferença. Deste modo, taxas de juro elevadas, na medida em que não erodem a base de depósitos, são mais lucrativas para os bancos, sempre que os depósitos se possam considerar um empréstimo de longa duração.

Note-se, portanto, que a ausência de um sistema bancário que transforma activos ilíquidos em líquidos, apesar de eliminar a fragilidade, acarrearia outros problemas (por exemplo, rigidez na oferta de dinheiro) pelo que defender a sua proibição seria uma medida que inevitavelmente acarrearia consequências não-intencionadas, e poderia criar problemas mais graves que aqueles que se pretendem resolver. Apesar de o resultado do sistema actual ser que inevitavelmente sempre existirão bancos que vão à falência, a verdade é que ninguém pode medir, à priori, o resultado de tão drástica medida. De momento, o que se tenta impedir são crises sistêmicas que arrastrem todo o sector, algo que apenas se tem evitado a grande custo social. Esse custo, desde a última crise financeira, foi o alongamento da depressão económica no tempo, através da manutenção do preço dos bens de capital a preços suficiente altos para impedir uma espiral de liquidações, não só nos bancos, mas também nas outras empresas. Só que isso dificulta o aumento da produtividade e um crescimento económico sustentável (agora que a palavra está em voga) ao dificultar a restruturação das estruturas de capital existentes. No fundo, trata-se de uma socialização dos prejuízos por métodos que a população não vê, mas sente.

Os reguladores são conscientes de que o problema fundamental da fragilidade bancária ainda não foi adequadamente resolvido pela regulação em vigor, reunidas nas sucessivas propostas de regulação do Comitê de Supervisão Bancária de Basileia (BCBS) – Basel I, II e III, nem se prevê que se resolva na versão IV, que está por entrar em vigor. Prevê-se, no entanto, que esta obrigue os bancos a possuir mais capital para reduzir o risco de insolvência e que se reduza o âmbito em que um activo do banco pode ser contabilizado “held-to-maturity”, isto é, ignorando o valor actual de mercado desses activos. Espera-se tipo de medidas mitiguem o problema da insolvência quando as coisas correm mal, mas não que resolvam o problema de base: que uma parte substancial do endividamento nas economias avançadas, se faça a partir de depósitos que podem ser exigidos em qualquer momento. Este continua a ser um problema irresolúvel para qualquer planificador. O sistema monetário necessita a expansão do crédito para não se contrair e a expansão do crédito necessita um sistema bancário solvente para se processar. Um sistema bancário solvente necessita simultaneamente controlar o risco da sua base de depósitos e ser lucrativo. As recentes falências bancárias tanto nos Estados Unidos como na Europa, revelam a dificuldade (quem sabe se a impossibilidade) de manter tal equilíbrio. Mas essa é uma questão para a próxima parte.

Errata: na primeira parte escrevi: “um seguro que garante todos os depósitos até um determinado valor (desde a última crise: 100,000 euros na Europa e 100,000 dólares nos Estados Unidos”. Onde diz “desde a última crise” deveria dizer “na última crise” porque, em 2010, o seguro de depósitos nos Estados Unidos foi aumentado para 250,000 dólares.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/06/09, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

 

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