A falsa promessa do populismo

André Quintas                                                                                .

A promessa de devolver o poder ao povo esbarra, inevitavelmente, nos mesmos mecanismos de distanciamento, concentração de poder e favoritismo que afirma querer combater.

O populismo é um dos fenómenos políticos mais importantes do nosso tempo. No entanto, continua a ser mal compreendido. Na sua essência, define-se pela oposição entre “o povo” e “as elites”, estas vistas como responsáveis por distorcer o funcionamento do sistema político e económico em benefício próprio.

Da esquerda à direita do espectro político, a promessa populista é invariavelmente a mesma: representar a vontade do povo e quebrar o domínio dos interesses instalados. A pergunta — raramente colocada — é a seguinte: poderão os movimentos populistas cumprir essa promessa? Conseguirão, de facto, representar “o povo” e desmantelar o poder das elites?

Neste artigo, argumento que não. Apesar do apelo popular, os movimentos populistas enfrentam dois obstáculos profundos: um problema de conhecimento e um problema de incentivos. Estes desafios não resultam necessariamente de falhas individuais ou partidárias, mas sim da própria lógica das instituições democráticas.

O problema do conhecimento

Os líderes populistas afirmam representar a “vontade do povo”. Mas será que existe, de facto, uma vontade colectiva clara e homogénea? E, a existir, como poderia um líder político conhecê-la com precisão?

Esta é a primeira dificuldade do populismo: identificar a vontade popular. A promessa de representar “o povo” esbarra numa questão complexa — quem é esse povo, e quais são, afinal, as suas preferências políticas? Três autores, cujas reflexões não visavam directamente o populismo, ajudam a perceber por que razão essa tarefa está longe de ser simples.

William Riker mostrou que o processo de decisão colectiva é tudo menos consistente. Pequenas mudanças nas regras de votação podem gerar resultados completamente diferentes. No fundo, o que isto significa é que não existe uma única forma “correcta” de traduzir preferências individuais em escolhas colectivas.

Já James Buchanan chamou a atenção para algo muitas vezes ignorado: as preferências dos eleitores mudam ao longo do tempo e consoante o contexto. Além disso, têm preferencias politicas que são muitas vezes contraditórias entre si. A implicação é óbvia: como pode um líder político referir que representa “o povo”, se não existe uma vontade única, fixa e coerente a representar?

Por fim, Timur Kuran acrescentou um desafio adicional: muitas pessoas escondem o que realmente pensam — um fenómeno que designou por “preference falsification”. Por medo de críticas ou simplesmente por quererem encaixar-se, acabam por dizer o que é socialmente aceitável, mesmo que não seja o que acreditam de verdade. Assim, a opinião pública pode não reflectir aquilo que os cidadãos realmente pensam. E, se nem os próprios cidadãos dizem o que pensam, como pode um líder populista afirmar que lhes está a dar voz?

É precisamente aqui que reside a primeira grande incapacidade do populismo: não é possível conhecer, com clareza, uma vontade popular única. A ideia de uma “vontade do povo” unificada é, portanto, um mito. Na prática, os líderes populistas acabam por projectar a sua própria visão do que “o povo” quer — e, ao fazê-lo, reforçam o seu próprio poder.

O problema dos incentivos

Admita-se agora que a vontade popular existe — e que o líder populista a consegue identificar com clareza. Resta ainda uma pergunta essencial: terá ele os incentivos certos para agir em conformidade com as preferências dos eleitores?

O sociólogo Robert Michels, no início do século XX, formulou a chamada “lei de ferro da oligarquia”: qualquer organização, mesmo as de origem democrática, acaba por concentrar o poder num pequeno grupo. Essa concentração não resulta necessariamente de corrupção, mas da própria lógica organizativa — com a especialização e a delegação de tarefas, a liderança torna-se inevitável. Assim, mesmo movimentos que emergem em nome do povo correm o risco de se transformar numa nova elite, com os mesmos mecanismos de autopreservação que as anteriores. Para o populismo, isto representa um problema particularmente grave- afinal de contas, a sua promessa central é dar expressão ao povo. Mas se toda a organização política tende a gerar hierarquias e a afastar-se da base, essa promessa torna-se ilusória.

O problema agrava-se com uma dificuldade estrutural das democracias representativas: os cidadãos elegem representantes para tomar decisões por eles, mas têm pouca capacidade para se manter informados ou acompanhar tudo o que é decidido em seu nome — um fenómeno conhecido como “rational ignorance”. Esta incapacidade permite que os representantes favoreçam interesses específicos, escudando-se, ainda assim, na retórica da “vontade do povo”.

Desta forma, fica exposta a segunda — e talvez mais demolidora — incapacidade do populismo: não escapa às limitações da própria democracia representativa. A promessa de devolver o poder ao povo esbarra, inevitavelmente, nos mesmos mecanismos de distanciamento, concentração de poder e favoritismo que afirma querer combater.

Repensar a democracia

Para os populistas, o problema não está nas instituições, mas em quem as controla. Prometem devolver o poder ao povo e expulsar as elites estabelecidas. No entanto, como vimos, essa promessa falha: não conseguem representar o povo nem desmantelar os mecanismos de concentração de poder.

Se o populismo falha nesse objetivo, urge perguntar: haverá ainda esperança para a democracia liberal?

A resposta depende da nossa capacidade de repensar a forma como a conceptualizamos e o nosso papel na vida democrática. Habituámo-nos a pensar a democracia como um sistema governado de cima para baixo (“top-down”), onde o Estado tem o papel central de resolver os problemas colectivos. Nesta visão, os cidadãos esperam que as soluções venham do topo — dos políticos, das instituições, do governo — o que favorece uma cultura de dependência. Desta forma, o Estado assume um papel paternalista, e os indivíduos deixam de se ver como agentes activos na construção da vida colectiva. Pior, quando os cidadãos encaram o Estado deste modo, a sociedade torna-se vulnerável ao “despotismo democrático” — um regime em que uma elite governa em nome da democracia, mas sem verdadeiro controlo por parte dos cidadãos.

Esta lógica é contrária à ideia de emancipação cívica que está no coração da democracia liberal. E é aqui que uma alternativa mais promissora se desenha: pensar a democracia como um processo que nasce de baixo (“bottom-up”), construído nas interacções entre cidadãos livres e capazes de se auto-organizar. Viver verdadeiramente em democracia exige mais do que escolher em quem votar — exige repensar o nosso papel na governação.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/04/11, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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