A guerra da Ucrânia já acabou, a guerra na Ucrânia não

Ricardo Dias de Sousa                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           .

Seria errado dizer que na Ucrânia nunca existiu um movimento independentista antes de 1990, mas seria falso afirmar que séculos de união política com Moscovo se resumiram a uma ocupação estrangeira.

Em 1892, no quarto centenário da Descoberta da América, imigrantes espanhóis e italianos tentaram decidir nas ruas de Nova Iorque, à força de punhos, paus e pedras, a nacionalidade de Cristovão Colombo. Hoje em dia, quando há estátuas do navegador que são derrubadas perante a indiferença ou mesmo o incentivo das autoridades isto parecerá absurdo, mas antes do pós-modernismo nos ensinar que a inevitável descoberta da América foi um mal absoluto, ignorando que aquilo nunca tinha sido um paraíso, a nacionalidade do genovês era motivo de espúrio orgulho nacional.

A importância da nacionalidade é muito posterior a Colombo. Espalhou-se pela Europa com os exércitos de Napoleão e foi consolidada pelo Romantismo como a expressão “natural” dos vários povos. Nem sempre era óbvio quem pertencia à nação, pelo que muitos governos criaram programas universais de educação para formar todos os cidadãos na mesma norma linguística e historiografia nacional. Acreditavam os ilustrados oitocentistas que o equilíbrio político e a paz universal resultariam de outorgar a cada nação o seu governo, mesmo se para tal fosse inevitável o derramamento de sangue no curto prazo. A escalada de violência culminou na Primeira Grande Guerra. Aquela que ia acabar com todas as guerras.

Nove a quinze milhões de mortos depois, a Primeira Guerra chegou oficialmente ao fim com a rendição e a repartição de muitos territórios dos impérios derrotados – Alemanha, Áustria, Turquia e Rússia. O critério aproximado foi a nação, ainda que todos os países encerrassem minorias importantes. Dado que não podiam ser impérios, Turquia e Rússia procuraram ser nações. Na Turquia, os governos limparam etnicamente a Anatólia de cristãos (gregos, arménios e assírios) à força de marchas e massacres. Na Rússia a transformação foi ainda mais devastadora.

Durante a Guerra Civil que se seguiu à Revolução de Outubro, os bolcheviques souberam erguer a bandeira patriótica quando várias facções inimigas, muitas estrangeiras, penetraram o coração do país. Muitos camponeses, que até 1919 desertavam à primeira oportunidade, regressaram às fileiras para defender a pátria. De Moscovo regressaram voluntariamente um quarto de milhão de desertores no momento de máximo avanço dos Brancos. Também muitos ex-oficiais czaristas se juntaram aos Vermelhos. O General Brusilov, herói do Exército do Czar, foi o mais sonante. Brusilov não era bolchevique, pelo contrário, chamava-lhes o Anticristo e os bolcheviques chegaram a metê-lo na prisão. Mas em 1920, os polacos ocuparam Kiev e Brusilev considerou que o seu dever era comandar o Exército do Anticristo na defesa da pátria. A propaganda bolchevique anunciou a sua adesão como um triunfo da Revolução, à vez que acentuava o discurso racista e patriótico nos meios de comunicação. Trotsky, esse famoso comunista, dizem que internacionalista, escreveu um artigo no Pravda em que exortava os russos a “defender a pátria (…) dos invasores polacos (…) que tentavam arrancar as terras que sempre tinham pertencido aos russos”, acrescentava que estes estavam motivados “por um profundo ódio à Rússia e aos russos.” Essa terra era a Ucrânia. Quando venceram, todos os nacionalismos que se opuseram aos bolcheviques, incluído o ucraniano, foram esmagados. A URSS russificou-se.

Setenta a oitenta e cinco milhões de mortos depois, a Segunda Guerra Mundial chegou oficialmente ao fim. Desta vez, ajudados pelas circunstâncias, os Aliados aplicaram um plano muito mais radical. Com a excepção da URSS, que reclamou significativos ganhos territoriais, as fronteiras europeias ficaram praticamente iguais. Quem se mudou foram as pessoas. As movimentações forçadas começaram ainda durante a guerra: a Bulgária mandou 160 mil turcos para a Turquia; checoslovacos e húngaros acordaram trocar 120 mil pessoas entre si e também houve trocas entre romenos e húngaros, polacos e lituanos, checoslovacos e ucranianos. Depois da guerra, dois milhões de franceses, 700 mil italianos, 350 mil checos, 300 mil holandeses e 300 mil belgas voltaram aos seus países. Quatro milhões de judeus abandonaram a Europa. Cerca de dois milhões de cidadãos soviéticos voltaram à URSS. Dois milhões de polacos foram obrigados a abandonar as regiões entretanto ocupadas pela URSS (hoje em dia na Ucrânia e Bielorrússia) e recolocados em territórios retirados à Alemanha. Mas a maior deportação foi a de treze milhões de alemães, expulsos da Europa Central e Oriental, e enviados à Alemanha, que passou a terminar a 100 km da Porta de Brandemburgo.

O resultado de todas estas deportações e emigrações foi que a Alemanha passou a estar povoada por alemães. A Polónia, cuja população era 68% polaca em 1939, passou a ser essencialmente e apenas polaca. A Checoslováquia que antes do Acordo de Munique tinha uma população com 22% de alemães, 5% húngaros, 3% de ucranianos e 1,5% judeus, era agora constituída exclusivamente por checos e eslovacos. O resultado foi uma Europa muito mais “arrumada” etnicamente. Quando se diz que a partir de 1945 a Europa conseguiu finalmente viver décadas de paz, ignora-se o pesadelo de milhões de pessoas em movimento num continente arrasado pela guerra que possibilitou esse sonho: uma Europa composta por estados-nação. As excepções eram a Jugoslávia e a URSS.

Em 1991 a URSS implodiu. Na ressaca desse acontecimento, provocado pelo governo da República Socialista Federativa Russa, as outras repúblicas socialistas declararam a sua independência de uma União onde nunca tinham tido autonomia real. Como fronteiras ficaram as que já existiam dentro da União Soviética, sem que ninguém se tivesse preocupado em saber a nacionalidade de quem que ali vivia. Em 1991 essas fronteiras não pareciam ser um problema. A Federação Russa necessitava reformas profundas e rapidamente se viu envolvida em questões territoriais com as suas repúblicas autónomas. A nova Rússia continuava a ser um estado multinacional que, curiosamente, tinha menos afinidade étnica com algumas regiões internas que com algumas das antigas repúblicas, como a Bielorrússia ou a Ucrânia. A independência destes últimos não era uma preocupação imediata. Os seus governos eram culturalmente russos e continuavam politicamente próximos de Moscovo.

Mas o tempo foi passando e na Ucrânia uma identidade nacional começou a brotar, pelo menos na metade Ocidental do país, que olhava com anseio para a Bruxelas e receio para Moscovo. Em 2014 grande parte da população fartou-se dos governos pró-russos e muitos jovens resistiram e morreram na Praça Maidan para conseguir colocar um governo pró-Bruxelas no lugar do existente. Seria errado dizer que na Ucrânia nunca existiu um movimento independentista antes de 1990, mas também seria falso afirmar o contrário, que séculos de união política com Moscovo se resumiram a uma ocupação estrangeira.

Quando o governo pró-russo foi expulso, Moscovo percebeu que as coisas tinham mudado. Rapidamente ocupou a Crimeia e ajudou à criação e manutenção de movimentos separatistas da parte Oriental do país. Durante oito anos o Ocidente simplesmente quis ignorar a situação pensando que fronteiras claras são sinónimo de estabilidade política. Mas, gostemos ou não, na Ucrânia não existiram fronteiras até 1991. Durante mais de um século milhares de camponeses russos emigraram para as cidades industriais ucranianas. No início do séc. XX, nos grandes centros urbanos, a maioria, ou quase maioria da população da Ucrânia era russa (54% em Kiev, 63% em Kharkov, 49% em Odessa, 63% em Sebastopol, etc.). O facto de os dois países fazerem então parte do mesmo estado, levou muitos descendentes de russos a assumir com indiferença a nacionalidade ucraniana, da mesma forma que muitos filhos dos “charnegos”, os emigrantes andaluzes na Catalunha, se afirmam catalães, alguns inclusivamente independentistas. Desde 1996, só o ucraniano é reconhecido como língua oficial do país, mas o russo continua a ser a língua franca na região. Numa sondagem Gallup em 2008, 83% da população inquirida preferiu responder em russo.

No censo de 2001 apenas cerca de 30% da população reconhecia o russo como a sua língua nativa e, numa sondagem de 2012, 50% dos habitantes do país afirmavam-se ucranianos, 29% russos e 20% russos e ucranianos. Em 2004, um estudo do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev reconhecia que entre 43% e 46% dos habitantes do país falavam russo em casa. Estes números, de fontes ucranianas, são mais ou menos coincidentes: aproximadamente metade da população da Ucrânia é ucraniana e metade da população é russa, sendo que 40% destes últimos se sentiam bem integrados no país. Dos dados aqui apresentados depreende-se que a independência ucraniana poder ser considerada um caso de sucesso. No entanto, quase um de cada três cidadãos da Ucrânia continua a sentir-se essencialmente russo, a maioria dos quais concentrados na Crimeia e nas províncias orientais do país. Reclamar a integridade territorial da Ucrânia, quer dizer, as fronteiras de 2013, mais além da incerteza do resultado no campo de batalha, coloca uma questão sombria se e quando os ucranianos vençam: que fazer com, pelo menos, 30% da população do país?

A Guerra dos Balcãs nos anos 90, considerada por muitos o primeiro conflito na Europa do Pós-Guerra Fria, foi em realidade o último na demolição do equilíbrio político arquitectado pelos vencedores da Primeira Grande Guerra. Aquando da dissolução da Jugoslávia voltaram à Europa as limpezas étnicas. O caso mais infame é o massacre de Srebrenica. Na Bósnia, sérvios (31%) e croatas (17%) preferiam que as suas regiões se unissem aos respectivos países a permanecer numa Bósnia multinacional. Srebrenica era um enclave muçulmano na região predominantemente sérvia. Quando as milícias sérvias ocuparam a cidade, os dirigentes precisavam resolver o problema de a maioria da população ali refugiada ser muçulmana. O coronel-general Ratko Mladic resumiu a questão ao tribunal da ONU que o condenou por genocídio: “As pessoas não são como pequenas pedras (…) que se podem simplesmente levar de um lugar para o outro. (…) não podemos fazer arranjos precisos em que os sérvios podem habitar uma parte do país enquanto o resto é retirado dali sem dor.” Foi este tipo de pensamento racional, afim ao que os dirigentes nazis utilizaram para justificar a Solução Final, que esteve na origem da decisão de executar quase 8 mil homens, muitos eficientemente separados das mulheres e crianças, postos em camiões e despachados com uma bala na nuca como mero expediente burocrático.

De volta à Ucrânia, as valas comuns deixadas para trás pelos russos não são tranquilizadoras. Ainda não sabemos se são vítimas do frenesim da guerra ou de algo mais sistemático. Ignoro se em caso de vitória total ucraniana os vencedores fariam o mesmo. Se calhar seriam magnânimos, mas, recordando as palavras sinistras de Mladic, a mera presença de russos no território ucraniano seria um problema a pedir uma solução. Na Jugoslávia, para além de 130 mil mortos, cerca de 4 milhões de pessoas tiveram de fugir das suas casas ao longo de quase uma década. Na Ucrânia esse número chegaria a 8 a 10 milhões, ou quase o dobro se os russos que se sentiam integrados prudentemente não quiserem arriscar ficar para trás. Isto para não falar nos 7 milhões e meio de pessoas dos dois bandos que já se encontram fora do país. Este problema não pode ser ignorado. É fácil indignar-se com os referendos fantoche organizados pelos russos. Difícil é reconhecer o óbvio: que um referendo livre chegaria à mesma conclusão. Assim como a Oeste já ficou claro que não querem ser russos, no Leste a grande maioria, mesmo não sendo 97% da população, também não querem ser ucranianos.

Em 2014 não se quis reconhecer a raiz do problema e hoje continua a evitar-se falar em negociações de paz, como se alguma fronteira nalgum lugar tivesse sido alguma vez sacrossanta. Em 1918 os vencedores não quiseram reconhecer a vontade (para não dizer o direito) de milhões de alemães que queriam viver numa Alemanha unificada, com a Áustria, os Sudetas, o corredor de Dantzig e parte da Silésia. Esta recusa entregou de bandeja a Hitler a primeira vitória militar 20 anos depois. Por muito que queiramos acreditar que os Nazis iriam invadir a Europa à mesma, sem regiões germanófonas que anexar ter-lhes-ia faltado o motivo e a oportunidade. Poderiam nem sequer ter chegado ao poder. Mas mesmo que assim não fosse, sem a existência de 20 milhões de alemães a viver a fora do Reich, quer dizer um em cada cinco, o Lebensraum teria sido muito mais complicado de vender à população e aos militares. A reunificação do Volk em 1918, poderia ter evitado a do Reich em 1939.

De volta a 2022, ninguém quer reconhecer que a Guerra da Ucrânia já terminou. Os russos não puderam tomar Kiev e não vão voltar a tentar. Agora defendem as regiões onde a população não vai sabotar as suas tropas. Não é possível voltar às fronteiras de 2013 sem derramar o sangue de milhões de civis. A opinião pública ocidental opinará que os russos que vivem na Ucrânia o merecem, como expiação dos pecados de Putin. Não percebem que passar a ser cidadão russo já é expiar esses pecados. Essa atitude, olhar com indiferença a tragédia de mais de 4 milhões de pessoas na Jugoslávia por causa de umas linhas imaginárias nos mapas dos atlas nas suas estantes, é a que está a alimentar uma guerra mundial. Uma a que já nos estão a levar e só os mais distraídos ainda não perceberam.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2022/10/28, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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