Ainda vamos a tempo

Isabel Menéres Campos                                                                                                                                               .

A direita nada fez do que se esperava dela. Por puro pavor de ser apelidada de fascista, deixou-se enredar na trama do politicamente correcto e dos delírios totalitários do unanimismo.

Em 1979, o PCP, sob a sigla APU, obteve nas eleições intercalares de então o estrondoso resultado de 18,80% dos votos, tornando-se a terceira força política em Portugal e elegendo 44 deputados, isto depois do PREC de 1975. Em 1983, repetiu o resultado, obtendo 18,07% dos votos e mantendo a posição de terceira força política. Seria caso para ter dito então “não há 18% de comunistas em Portugal [ou melhor, não há 18% de pessoas que querem um regime de partido único, a abolição da propriedade privada e a instauração de uma ditadura marxista-leninista]”.

O certo é que o PCP tinha, como ainda hoje terá embora em menor escala, uma influência decisiva em certos sectores da sociedade. Tendo obtido aqueles resultados em 1979 e em 1983, o PCP nunca fez parte do governo, embora, em 2015, tenha apoiado a solução governativa engendrada por António Costa para se manter no poder.

Os resultados eleitorais do passado dia 10 de Março, não sendo surpreendentes, colocam o país numa situação de impasse e, havendo opiniões dos comentaristas para todos os gostos, muitos têm sido aqueles que reconhecem que é preciso uma solução que integre o Chega porque não podemos desconsiderar o pulsar de mais de um milhão de votantes que se expressaram democraticamente, entregando o seu voto a um partido que faz parte do sistema. Mas também não podemos desvalorizar os cerca um milhão e oitocentos mil votantes que depositaram o seu voto na AD, que venceu as eleições, sublinhe-se, não aderindo a um discurso populista e polarizado assente na ideia “nós somos melhores que eles porque nós somos os puros e eles os ímpios”. Pelo contrário, foi traçada uma clara fronteira em relação a essa proposta. Voltar atrás, seria trair o compromisso assumido pela AD com quase dois milhões de eleitores. Igualmente em 1979, a AD de Sá Carneiro e, em 1983, o PS de Mário Soares descartaram a hipótese de integrar o PCP na governação, não por desrespeito pelos eleitores do PCP, mas porque, entre outras razões, o projecto político comunista havia sido rejeitado em urna por dois terços dos portugueses. Mais recentemente, em Espanha, Pedro Sánchez, antes de se aliar aos comunistas do Podemos, havia declarado que não faria aquilo que apelidou a “coligação da insónia”. O certo é que ousou fazê-lo mais tarde, por pura táctica política, e os resultados, em Espanha, estão à vista.

O contexto português é outro e os tempos são outros, é certo. Voltando aos eleitores do Chega, não podemos ignorar que um milhão de portugueses escolheram um programa político cujas propostas poucos conseguem identificar. Porém, isto representa sobretudo uma revolta legítima com o actual estado em que sucessivos governos socialistas deixaram o País, se bem conseguimos interpretar este voto que nos apressámos a apelidar “de protesto”. De referir, todavia, que nem todos os eleitores do Chega votaram em protesto. Há muitos que se reconhecem genuinamente na postura mais conservadora, nacionalista e euro-céptica que o partido aparentemente defende.

Em mais de vinte anos de socialismo, com ligeiras interrupções para compor estragos, o PS governou em condições externas altamente favoráveis e, mesmo assim, Portugal não conseguiu sair da cauda da Europa em termos de desenvolvimento, de qualidade de vida e de poder de compra. Dir-me-ão: estamos muito melhor do que há 50 anos atrás. Sem dúvida. Ainda assim, há muita gente pobre, sem qualidade de vida, sem viver com dignidade, sem acesso a serviços básicos de saúde, sobretudo no interior, muitos jovens sem perspectivas, sem esperança, sem hipóteses de constituir família ou de viver decentemente. Vivemos atolados em impostos, em burocracia (que fomenta e facilita a corrupção), subjugados ao politicamente correcto. O que tivemos até hoje foram governos incapazes de reformar, governantes que são carreiristas políticos, geralmente incompetentes e um povo cada vez mais dependente do Estado e mais pobre. Simultaneamente, tivemos um governo com uma preocupação histérica em torno de questões dissolventes como a suposta inclusão de minorias identitárias, que defendem causas de nicho que nada dizem à esmagadora maioria dos portugueses. E creio que é este o ponto.

A direita nada fez do que se esperava dela. Por puro pavor de ser apelidada de fascista, deixou-se enredar nesta trama do politicamente correcto e dos delírios totalitários do unanimismo – passando a utilizar sem pejo o #tod@s –, a aderir, sem pensar, às microcausas identitárias, ao dogma artificial da igualdade e do pensamento único e inclusivo, deixando a esquerda monopolizar, com o seu raciocínio enviesado, as inquietações das minorias, das mulheres, dos homossexuais, dos ansiosos climáticos, dos imigrantes, dos ungidos que têm o exclusivo da interpretação dos factos históricos.

A direita moderada tem, pois, de se rearmar ideológica e programaticamente e abandonar os medos. Deixar de aderir acriticamente ao politicamente correcto (de que a muleta linguística “todos e todas”, “cidadãos e cidadãs” são um símbolo), perceber que o que preocupa a esmagadora maioria dos portugueses não são as sinecuras de uma meia dúzia de urbanitas, são problemas concretos (e até prosaicos) que as pessoas vivem no dia-a-dia: a segurança e a autoridade das forças policiais, a justiça célere e eficaz, o esquecimento do interior, a imigração descontrolada e sem condições de acolhimento digno, o desastre da educação e a falta de autoridade dos professores, o acesso a cuidados de saúde, a corrupção e a tomada do Estado pelos aparelhos partidários, a falta de transportes eficientes. E, já agora, também é preciso começar a pensar a sério no problema do inverno demográfico e da retenção de jovens talentos em Portugal e da criação de condições efectivas para constituírem família por cá. E tudo isto prestando contas da actividade governativa, explicando as coisas em linguagem simples, para todos.

Estou certa de que a esmagadora maioria dos eleitores do Chega é gente cheia de boas intenções, farta da miséria moral a que assistiram durante os governos de Costa. Gente que reage através do voto contra o que percepciona ser uma direita apática, complacente e por vezes colaborante com a tentativa de amestrar um povo em torno dos desígnios do socialismo, sempre em nome do “bem-comum”. A causa dos furúnculos da nossa sociedade não é a gritaria superficial em que um milhão de portugueses se revê legitimamente. A causa é a classe política medíocre que temos e a sua incapacidade de responder àquilo para que foi eleita. Talvez não nos lembremos daquele episódio lamentável de Santos Silva e da não menos triste cena dos deputados do Chega na Assembleia da República, em Abril de 2023 e depois da captura de imagens numa sala reservada em que o Presidente da Assembleia gozava com a situação (“o meu olhar foi um olhar gelado”), perante o ar jocoso, mas concordante, de Marcelo. O sectarismo a que o Chega foi votado – e que inteligentemente André Ventura explora – é o reflexo da lógica suicida de trincheiras, que a esquerda quis manter e instrumentalizar por motivos meramente tácticos e de sobrevivência. Um sectarismo que inevitavelmente conduz à degradação da democracia como instrumento para alcançar um fim muito mais valioso: a liberdade. Espero que ainda estejamos a tempo.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2024/03/15, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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