Miguel Granja .
Quem tiver as palavras como ocupação ou vocação, terá já certamente reparado que elas se prestam igualmente bem às metáforas de poetas e às hipérboles de demagogos: as palavras deixam-se seduzir tanto pelas intuições de Goethe como pelas intenções de Goebbels. O actual conflito entre Israel e o Hamas desencadeado pelo pogrom de 7 de Outubro oferece[1]nos uma das principais (senão a principal) cenas actuais onde mais flagrantemente se manifesta essa dupla disposição, ao mesmo tempo criativa e destrutiva, das palavras. Mais plásticas, maleáveis e deferentes do que os factos a que buscam corresponder, as palavras padecem, nas mãos e nos cárceres dos seus torturadores orwellianos, as torções mais violentas, os entalhes mais profundos, as electrocussões mais intensas. No entanto, torcidas, entalhadas e electrocutadas, não quebram nem sucumbem: ao contrário dos corpos, as palavras não morrem, não capitulam, nem confessam – transformam-se no seu contrário.
Pensemos, por exemplo, no racismo tal como definido pelos novos “anti-racistas” (lá estão elas a transformar-se no seu contrário). Aquilo que caracteriza o novo anti-racismo é a definição expansiva: o anti-racismo define todas as formas de racismo o mais expansivamente possível para que nessa categoria infinitamente dilatável caibam todos os tempos e espaços, todas as essências e acidentes, todas as acções e omissões. Definição inclusiva por excelência, nela tudo é racismo, do micro ao macro, do conjuntural ao estrutural, do pessoal ao institucional, do consciente ao inconsciente. Definição com focinho e faro de cão de caça que parte todos os dias no encalço de nova presa, do seu zelo e amplitude, de inspiração e aspiração totalitárias, nada escapa. Porque nada lhe é estranho. Porque nada, quando devidamente fuçado, é inocente: nem o lúdico mundo dos bebés (diz que a forma como os bebés escolhem cores revela se apoiam ou não o movimento BLM), nem o neutral reino das plantas (diz que a dicotomia native-versus-alien species perpetua a xenofobia).
No entanto, o mesmo anti-racismo, quando se trata de definir o anti-semitismo, passa magicamente de expansivo a restritivo, definindo-o o mais restritivamente possível para nos fazer compreender que, se tudo é racismo, nem tudo é anti-semitismo. Por exemplo, o anti-sionismo. Afinal, seria exagerado qualificarmos de anti-semitas os legítimos apelos ao extermínio dos judeus, à violação em massa das suas mulheres e à imolação indiscriminada dos seus bebés (certamente já racistas), quando configuram, na verdade, um exercício perfeitamente razoável de crítica democrática a Netanyahu e aos colonatos israelitas, irrefutavelmente ilegais à luz do fetiche – perdão, do direito – internacional. Na mesma Ivy League em que os bebés estudados são considerados racistas pela forma como escolhem brinquedos e cores, os adultos que lá estudam e que apelam, sem pudor, ao extermínio dos judeus não o são necessariamente. Bebés a brincar: obviamente racismo. Adultos a apelar explicitamente ao extermínio dos judeus: não é óbvio que seja anti-semitismo. Segundo o aforismo solene das suas presidentes em resposta à pergunta se o apelo à morte dos judeus constitui ou não anti-semitismo: “Depende do contexto”. Tudo é racismo, excepto o anti[1]semitismo. Tudo é racismo, até as brincadeiras dos bebés. Nem tudo é anti-semitismo, nem sequer os massacres de judeus. O anti-semitismo é um judeu: o anti-semitismo é o judeu dos racismos.
De expansivas a restritivas, as palavras deixam-se assim transformar no seu contrário. Em Gaza, a guerra nascida de um crime passa a ser definida como crime de guerra; o rapto de crianças e idosos passa a ser definido como um corajoso acto de libertação; a punição de uma tentativa de genocídio passa a ser definida como atentado genocida; o direito inerente de legítima defesa, inscrito no artigo 51 da Carta da ONU, passa a ser definido, pela própria ONU, que julga concedê-lo em vez de reconhecê-lo, como um ilegítimo acto de agressão; o direito passa a designar o delito e o delito passa a designar o direito; a vítima passa a designar o carrasco e o carrasco passa a designar a vítima. E é no sucesso desta inversão orwelliana entre a vítima e o carrasco que reside o sucesso das demais inversões que, a ela atreladas, lhe são subsidiárias. O que tem, afinal, o anti-semitismo de tão especial para ser excluído da sempre crescente e multiplicante família dos racismos? Excluído, isolado, exilado, guetizado, perseguido, humilhado. Como um judeu, afinal. Já o dissemos: o anti-semitismo é o judeu dos racismos.
É a própria existência dos judeus, afinal, que se faz intolerável, porque é ela que se interpõe entre a vítima real e a vítima imaginária. Na era do wokismo, isto é, da glorificação e glamourização da vítima, onde sê-la passou a ser mais apelativo – e lucrativo – do que não sê-la, a presença da vítima real é a maior ameaça à vítima imaginária, que se candidata, com falsos anais e dores postiças, à sua condição e estatuto. Porque na autenticidade daquela detectamos a fraude desta. Duplamente pretendente (os pretendentes de Penélope são também “pretenders” de Ulisses), a vítima imaginária está condenada a ver na vítima real, que ela inveja e busca emular, o seu verdadeiro inimigo e opressor. Os judeus têm de ser silenciados e escondidos enquanto vítimas justamente porque são vítimas reais. O memorial ao Holocausto em Hyde Park, que as autoridades cobriram com uma lona azul durante a manifestação “anti-sionista” de Sábado (27 de Abril), é simultaneamente um monumento que venda e desvenda: sob lonas ou em túneis, o judeu, vítima real, tem de ser escondido, para seja visível apenas o teatro da vitimização que, em Londres ou em Gaza, está em cena à superfície. O judeu, enquanto vítima, tem de ser vendado e invisível. Não pode ver nem ser visto.
Aos judeus, ao longo da história, já extorquimos tudo, dos seus dentes de ouro às suas vidas de miséria: faltava apenas a extorsão final, a da sua condição de vítima. Des-vitimizar os judeus é assim uma inevitabilidade do wokismo, a nova e ciumenta aristocracia da vitimização. O Holocausto, que já começa a ser (re)descrito como “white-on-white crime” (e Anne Frank já passou a ser, no orwelliano slang wokista, uma “Becky”), vai perdendo aos poucos a sua singularidade; e as suas vítimas, agora classificadas pelos tons da sua pele e não pelos algarismos concentracionários nela tatuados, passam de “Untermenschen” a “supremacistas brancos”. Onde o piropo é crime e dá pena de prisão até três anos, a violação em massa de judias é celebrada como resistência e, segundo uma célebre inscrição, “macht frei”. Cada judia mutilada é um cravo de Abril; cada judia violada, uma “Grândola, Vila Morena”. O feminismo, que constitui o movimento de defesa de todo o “segundo sexo”, virou as costas às mulheres judias, espécie anómala de terceiro sexo – sem defesa, sem roupa e sem vida, como o corpo raptado, torcido e desfilado de Shani Louk na caixa aberta de uma carrinha lotada de brutamontes anti-semitas: a judia é o judeu do feminismo.
Sequestrando o mais poderoso vocábulo dos nossos tempos – vítima – e capitalizando a bênção inscrita nessa maldição, o estatuto inscrito nessa falta de estatuto, a superioridade inscrita nessa inferioridade, as novas gerações (ainda tão jovens e já tão velhas de anti-semitismo) saem hoje das universidades (e quanto mais “humanas” forem as “ciências”, mais desumanos serão os seus “cientistas”) orgulhosamente persuadidas, até ao fanatismo, de serem oprimidos imemoriais (a imemorialidade constituindo sempre uma conveniente protecção contra os factos) sem o inconveniente de terem padecido de qualquer opressão real – ou, alternativamente, opressores primordiais (ver imemorialidade) cuja falsa confissão de culpa não é senão o seu modo de exibição de virtude – isto é, de vaidade.
Desfrutando assim do prestígio singular que o Zeitgeist confere à condição de vítima e ao estatuto de oprimido, dramatizam a sua resistência anti-fascista nas redes sociais como se fossem a reencarnação, em melhor, dos guerrilheiros espanhóis de Hemingway: cada tweet no X é uma ponte demolida, cada reel no TikTok uma Ofensiva de Segóvia. Ei-los corajosamente lançando sopa de tomate aos girassóis de Van Gogh como se estivessem, na verdade, a desembarcar nas praias da Normandia debaixo do fogo cerrado de Rommel. Ei[1]los destemidamente estendidos nas estradas do país, impedindo os pobres de chegarem ao trabalho e os doentes de chegarem ao hospital, como se estivessem, isso sim, a impedir Mussolini e os seus camisas negras de marchar sobre Roma. Ei-los confortavelmente acampados nas mais prestigiadas universidades do mundo, intimidando os seus colegas judeus e idolatrando carniceiros anti-semitas, como se estivessem afinal nas ruínas de Estalinegrado a deter, com as próprias vidas, o imparável avanço da Wehrmacht.
Filhos aborrecidos de uma burguesia tardia para quem a História é mais virtual do que real, imaginam-se a combater nazis sem ter de combatê-los realmente: os nazis que combatem são, como eles, digitais: o seu combate ao fascismo nasceu no Fortnite, não em Guernica. A sua coragem é, na verdade, uma fuga do quotidiano. De um quotidiano sem ameaças reais, como mísseis e invasões, como massacres e violações. Fogem de uma existência sem precariedade existencial: afirmar-se vítima é afirmar a precariedade constitutiva dessa condição no seio de uma existência almofadada de abundância e segurança. Aborrecida, portanto. O tédio gera a sua própria angústia existencial, convocando-a a imaginar-se afinal desconfortável, precária, vítima – numa palavra: viva. Pobres heróis imaginários alapados no sofá da História e amaldiçoando as obesidades do tédio em que inutilmente se afundam. Tudo o que querem é escapar ao tédio: tudo o que querem, no fundo do seu afundamento, é ser interessantes.
Sedentos de viver tempos interessantes (tendemos a associar tempos interessantes a tempos de balas a voar e barricadas a arder, não a tempos de prateleiras cheias de queijos de trinta origens certificadas e voos comerciais ao alcance de qualquer plebeu), dedicam-se a manifestações programadas em avenidas protegidas, imaginando-se Trotskis a marchar na neve, Ches abrigados na selva, Cunhais em plena evasão. Mobilizando todos os ditos e interditos que o vocábulo supremo contém, reivindicam para si mesmos as prerrogativas aristocráticas do sofrimento grupal, ficção de fusão sem a qual se veriam arrastados, enquanto indivíduos, insuportavelmente indivíduos, para a sua própria fissão. Para fugirem à desintegração, acoplam-se, como parasitas, a qualquer forma de integração. E o sangue vermelho da vítima devém assim o sangue azul dos seus parasitas.
Os judeus, cuja quase inacreditável história de sobrevivência os privou da paz mas também do tédio, terão necessariamente de ser vistos como inimigos existenciais tanto por quem busca a paz como por quem foge do tédio. A paz, entendida como o sempre almejado “fim da história”, que eles, mais que ninguém, parecem comprometidos em impedir (Kant, em O Conflito das Faculdades, prescreve a conversão e assimilação dos judeus, denominando este processo “a eutanásia do judaísmo”; e Hegel, num dos seus momentos crípticos mais lúcidos, acusa-os, na sua Fenomenologia, de serem o calço no portão da História, impedindo-a de fechar: “o povo mais rejeitado exactamente porque se encontra imediatamente diante da porta da salvação”). E o tédio, o nosso privilegiado niilismo da abundância e da segurança, afinal a nossa inveja inconfessada, talvez inconfessável, pela longa experiência sem tédio e sem privilégio de um povo que, de cada vez que um novo dilúvio de ódio ameaça afogá-lo, sempre encontra forma de separar o mar em dois e escapar rumo ao deserto, deixando para trás as quadrigas e os cavalos dos faraós, entulho e ossadas já sem peso, já sem vida, baixando lentamente às águas profundas e mudas da História.
Salvos do dilúvio mas condenados ao deserto, os judeus serão sempre, no entanto, o oposto do deserto que cresce diagnosticado por Nietzsche e que não é senão, na verdade, a desertificação (e a deserção) do homem moderno – ou seja, nós mesmos. Somos nós o deserto que cresce: “ai daquele que esconde desertos dentro de si!” É natural que, desérticos e desertores, sejamos totalmente incapazes de compreender o mistério de um povo que converte e cultiva o deserto, em vez de se render à desertificação e à deserção; ou que ressuscita, em pleno deserto sem petróleo, uma tamareira da época bíblica, extinta pelos romanos há quase vinte séculos. Sem compreendermos, portanto, as lições que os judeus retiram dos dilúvios e dos desertos, jamais compreenderemos como se extinguem romanos e se ressuscitam tâmaras – nem, sobretudo, o paciente princípio irrigador que, em pleno deserto, gota a gota, as traz sempre de volta à vida.
A revolta das gerações faraónicas e desérticas é a revolta dos privilegiados e entediados contra o seu próprio privilégio e tédio de “último homem”, cuja única saída, para se sentirem historicamente vivas, parece ser o fingimento. Como o empregado de café de Sartre em O Ser e o Nada, as vítimas imaginárias dos nossos tempos representam o seu papel “talvez com demasiado afinco”: a sua revolta é, afinal, apenas má-fé: são o que não são para poderem não ser o que são: são as vítimas reais que não são para poderem não ser as vítimas imaginárias que são. Dentro das suas fatiotas vintage, imaginam-se o menino do pijama às riscas; promovidas pela comunicação social, imaginam-se Anne Frank escondida no compartimento oculto; exibindo publicamente as suas coloridas sexualidades, imaginam-se os esqueletos a preto e branco que, do lado de lá do arame farpado de Auschwitz, nos fixam para sempre: brincar às vítimas exige excluir a vítima que não brinca, a vítima que não é de brincadeira.
Plagiando a poderosa história da vítima real para combaterem o tédio insuportável de o não serem, ei-las assim vítimas dinásticas, herdeiras de sofrimentos e injustiças imemoriais e, ao mesmo tempo, sempre iminentes. É a vítima como património e patronímico: herdo logo existo. “Wokismo”, na verdade, é o nome envaidecido que os nossos tempos dão a este nosso narcísico fingimento de empregados de café em plena encenação: a geração que se afirma como resistente foi a primeira a capitular – e sem qualquer resistência. As universidades que ocupam não são o lugar da sua batalha, mas da sua rendição: ei-las a marchar desde a madrugada de 7 de Outubro, avançando em direcção à sua retirada. Era afinal inevitável que o wokismo – um caloiro ideológico perfeito para apanhar caloiros históricos – acabasse atraído e capturado pela velha raposa do anti-semitismo: a vítima judia, inaceitavelmente real, intoleravelmente ininterseccionalizável, tem de desaparecer: em pessoa (corpo carbonizado), em palavra (conceito esvaziado), em efígie (cartaz rasgado), em memória (memorial tapado). O wokismo é uma sofisticada máquina de inclusão cujo mecanismo, bastante primário, assenta, justamente, nesta exclusão. O judeu, ainda uma vez, tem de desaparecer.
Após um breve parêntesis histórico, o anti-semitismo, edificante tradição de ódio aos judeus que o nazismo temporariamente manchou de desonra, voltou, com a causa palestiniana e sobretudo com o 7 de Outubro, a elevar-se à sua velha honradez e a ostentar as suas antigas honrarias (o anti-semitismo era, no século passado, o ismo dos nazis; hoje, é o ismo dos anti[1]nazis: :“From the river to the sea” é a fórmula com que dizem agora, uma vez mais, e desta vez virtuosamente, “Judenrein”). Que os novos anti-semitas se inspirem nos métodos e nos tropos do velho nazismo não é sequer uma contradição – é sobretudo um corolário. O anti-semitismo, essencialmente parasitário, perseguirá sempre o judeu emparelhando-se àquele que for o eixo axiológico central de cada época: foram a raça inferior no tempo em que esse eixo era a superioridade racial; são agora racistas, no tempo em que esse eixo é o anti-racismo. Foram apátridas no tempo em que esse eixo era a exaltação da pátria; são agora nacionalistas, no tempo em que esse eixo é o fim das nações. Foram deicidas no tempo em que esse eixo era o Deus vivo; são agora genocidas, no tempo em que, morto Deus, esse eixo é o próprio Homem.
É, pois, natural que os entediados da História e da desertificação do Homem sejam tão facilmente atraídos pelo feitiço do anti-semitismo: os judeus são misteriosamente não entediantes. Os judeus são singularmente interessantes. A sua história, bela, longa e caleidoscópica como uma frase de Proust, será sempre incompreendida, e portanto invejada, por tempos onde imperam o slogan sensacionalista, o soundbite ruidoso, a palavra de ordem efémera. Cada época reinventa o seu próprio anti-semitismo. A nossa – sensacionalista, ruidosa e efémera – já reinventou o seu. Os nossos judeus não são os poderosos titereiros dos Protocolos nem os prepotentes opressores do Apartheid. São muito piores do que isso: são vítimas reais. O corolário lógico e imperdoável é, num duplo sentido, fatal. Nas palavras de Heinrich Himmler no Salão de Ouro do Castelo de Posen, a 6 de Outubro de 1943: “Este povo tem de desaparecer da face da terra”. Não é, portanto, por acaso que os judeus – fardados ou em farrapos, ricos ou pobres, segregados ou assimilados, com estado ou sem estado – são o objecto perpétuo da solução final dos Himmlers de agora e de outrora: a solução final é a única solução: “From the river to the sea”, “Este povo tem de desaparecer da face da terra”.
Artigo publicado pelo Observador em 2024/05/03, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.