Como se levanta um Estado

Ricardo Dias de Sousa                                                                                                                                      .

O paralelismo entre as reformas de Salazar e Milei serve, não para demonstrar o paralelismo entre a ideologia dos dois indivíduos, mas para reivindicar a autonomia da Economia.

Logo no dia seguinte a ganhar as eleições, Javier Milei deu uma entrevista em que explicou os primeiros passos do plano de reformas económicas que a Argentina deverá encetar a partir de hoje com a sua tomada de posse. Eu ouvi. E suspeito que o à vontade com a matéria e a capacidade didáctica para comunicar os graves problemas económicos que afectam o país à população é muito superior ao de qualquer dos políticos portugueses com responsabilidades governativas actuais. Graças à União Europeia, Portugal está, para já, imune a converter-se numa Argentina. Isto alivia os nossos políticos dessa responsabilidade e os nossos compatriotas do embaraço de os ter de ouvir. Em Portugal, um plano económico tão claramente apresentado publicamente remonta já a 1928, quando Oliveira Salazar divulgou as linhas gerais da sua Ditadura Financeira durante o primeiro discurso público depois de tomar posse como Ministro das Finanças. E os paralelismos são evidentes.

Começando pelo paralelismo menos óbvio: Milei deu uma entrevista a um programa de rádio enquanto Salazar discursou num quartel. Mas o propósito foi idêntico. Deixar manifesto desde o início aos árbitros do poder político (para Milei os eleitores e para Salazar os militares) as dificuldades que se avizinham e o compromisso de não retroceder. No resto a receita é exactamente a mesma: reforma fiscal, equilíbrio orçamental, financiamento a curto prazo, estabilidade cambial e restruturação do sector financeiro.

Depois de uma breve primeira passagem pelo Ministério das Finanças, logo no alvor do Golpe Militar de 1926, Salazar surgiu nos meios de comunicação como uma espécie de crítico autorizado do Regime. Para o manter entretido e fora dos jornais, o Governo encarregou-o de elaborar uma reforma do sistema tributário. Após décadas de instabilidade orçamental, a colecta pública tinha-se convertido num retalho de tributos, impostos, taxas, tarifas, emolumentos, licenças, antecipações, coimas, multas e gratificações várias à medida que cada ministério, para conseguir o dinheiro que o Tesouro não remitia, esbulhava o infeliz que por imposição legal ou necessidade burocrática requeresse um favor específico da repartição em causa. Quando concluído, esse projecto de reforma foi diligentemente colocado na gaveta pelos militares. Mas assim que Salazar chegou novamente à pasta das Finanças, com a garantia de plenipotência ministerial renitentemente outorgada pelo Regime, a primeira coisa que fez foi abrir essa gaveta.

Na administração tributária Argentina sucede algo parecido. Há 170 impostos, 90% dos quais para arrecadar entre 0,5% 2% do PIB, dependendo das fontes. Durante a campanha (e na entrevista que se seguiu) Milei reafirmou a intenção de reduzir o número total de impostos a 10. O simbolismo do número dá a entender que, ao contrário de Salazar, Milei ainda não terá claro nem que impostos se vão manter, nem que impostos poderá abolir, até porque isso dependerá em grande medida de um pulso, não com os colegas de governo dos outros ministérios como sucedia com Salazar, mas com o poder territorial e local responsável por arrecadar muitos deles. De qualquer forma e em ambos os casos, a reforma fiscal é muito necessária não tanto por questões ideológicas, mas pela simples necessidade de facilitar o cálculo económico, tanto aos indivíduos como ao próprio Estado.

O segundo e mais importante passo, um que resulta essencialmente da vontade do Governo, mas, ao mesmo tempo, nenhum governo tem vocação para dar, é o do equilíbrio orçamental. Esta foi a medida estrela da reforma de Salazar. Não era para menos. Com Salazar, um governo constitucional português encadeou vários exercícios consecutivos de orçamentos equilibrados pela primeira vez. Foi também a última. A importância propagandística para Salazar foi de tal ordem que, apesar de a disciplina orçamental se ter ido relaxando na Pós[1]Guerra, os orçamentos apresentados pelos seus governos continuaram a prometer esse equilíbrio no papel. Hoje em dia sucede o contrário. A crença na importância do gasto público no estímulo da economia está de tal forma enraizada na população que, em Portugal, os governos alardam todo o gasto público, tanto o que fazem como o que só prometem, quando em realidade estão a restringir a despesa. Na última década, nenhum, nem à esquerda, nem à direita, gastou mais do que aquilo a que a UE fez vista grossa. Déficit sim, mas com juízo.

Mas se a propaganda era importante, mais importantes foram as consequências económicas. Sem equilíbrio orçamental, não existiria estabilidade monetária e sem estabilidade monetária não havia governo ou regime que resistisse. É por isso que, tanto em Portugal em 1928 como na Argentina em 2023, o equilíbrio orçamental é absolutamente necessário independentemente de poder ser recessivo ou não. Também aqui, apesar do paralelismo na reforma, a estratégia parece diferir. Se para os dois equilibrar o orçamento passava pela redução do desperdício no gasto público, para Salazar também passou pelo aumento das receitas fiscais, algo que para Milei, até ver, não. Milei quer reduzir o peso do Estado na economia, ao contrário de Salazar para quem este era benéfico e só a crise obrigava a adiar as suas benesses. Goste-se ou não, Salazar deu à luz o Estado-Social em Portugal enquanto Milei prometeu vir a ser o seu cangalheiro na Argentina.

A estabilidade orçamental é tão mais importante quanto o Estado tenha as portas fechadas ao crédito. Sem credores que o financiem, para funcionar o Estado precisa ou de arrecadar impostos ou de imprimir dinheiro. Imprimir dinheiro é essencialmente contrair uma dívida. Os estados, através do monopólio sobre a violência, têm um direito de saque sobre os seus cidadãos a que eufemisticamente alguns chamamos impostos (e, irrealisticamente, outros chamam contribuições). Em troca dos bens e serviços que os governantes necessitam para manter o (e manter-se no) poder, o Estado emite uns papelinhos que aceita redimir quando apresentados para o pagamento de impostos. Entretanto, dada a ubiquidade da necessidade de pagar impostos e a tradição do monopólio do estado sobre a cunhagem, estes vão sendo utilizados como dinheiro nas transacções, mesmo que não exista um curso forçoso. Um estado pode imprimir mais dinheiro que, na medida em que exista procura para esse dinheiro e a solvência do próprio estado não se deteriore, este vai sendo aceite pelos agentes como meio de pagamento. A promessa implícita de aceitação futura por parte do próprio Estado é garantia suficiente de reserva de valor. Só que, se a solvência de um estado se deteriora, os agentes económicos vão evitar ser seus credores. Incluindo evitar acumular saldos monetários. No limite só vão querer usar o dinheiro no momento da transacção. A essa rejeição dá-se o nome de inflação e, nos casos de rejeição generalizada, de hiperinflação.

Apesar de Salazar em 1926 e 1927 ter criticado a intenção do Governo em se endividar, quando chegou ao Ministério, uma das primeiras medidas foi procurar em Londres e Paris investidores que lhe estendessem esse mesmo crédito que censurou o seu antecessor, Sinel de Cordes, por procurar. Quando confrontado com a necessidade, Salazar reconheceu (se é que não tinha reconhecido antes) que esse dinheiro era muito importante para gerir a solvência no curto prazo, já que as reformas económicas não costumam obter resultados imediatos. Do mesmo modo, não é surpreendente que a primeira viagem do novo presidente da Argentina seja a Washington para negociar com o FMI condições de pagamento mais favoráveis no acordo existente. No caso de Salazar, parece que houve alguma disponibilidade por parte do Barings para emprestar esse dinheiro, só que em condições que o ditador considerou inaceitáveis, pelo que o equilíbrio orçamental se conseguiu à base de uma terapia de choque. Se o FMI lhe fecha a porta, Milei terá que fazer o mesmo. A Argentina é o maior devedor internacional ao FMI. Se, depois de aprovar 57 mil milhões de dólares de crédito em 2018 (sem que a dívida de 2001 tivesse sido saldada) e 44 mil em 2022 (dos quais inclusivamente houve uma tranche de 7,5 mil milhões desembolsada em Agosto deste ano apesar de o próprio relatório do FMI reconhecer o incumprimento do acordo), o FMI negasse agora auxílio ao único governante ideologicamente comprometido com o equilíbrio orçamental que apareceu na Argentina no último século, seria um indício preocupante de que a prioridade na agenda da instituição não é a que declara na sua missão, promover estabilidade financeira e cooperação monetária.

O que é certo é que, com ou sem dinheiro fresco, a prioridade de Milei será obter uma estabilidade cambial que lhe permita mudar profundamente o regime monetário para atrair os cerca de 200 mil milhões dólares depositados off-shore e proteger os argentinos das tentações dos governos vindouros de usar prodigamente a impressora para distribuir favores e sair de apertos. Porque desta medida depende a estabilidade, quiçá o sucesso, do seu governo. É um equilíbrio complicado, o de sustentar o valor do peso até ao exacto momento em que possa ser substituído pelo dólar. No tempo de Salazar a escolha estava aparentemente facilitada pela existência do padrão-ouro ao que as várias divisas aderiam declarando a sua convertibilidade, pelo menos em aparência. Portugal aderiu ao padrão-ouro a finais de Junho de 1931 depois de 3 anos de controlo orçamental férreo, 82 dias antes da suspensão da convertibilidade da Libra Esterlina deixar o Banco de Portugal com as calças na mão. Salazar queixou-se amargamente do facto quando constatou que o padrão-ouro na prática, era um “padrão-libra” já que as moedas de ouro em espécie tinham deixado de circular. Os depósitos e os créditos do governo português custodiados em Londres denominados em libra-esterlina deixaram de ser convertíveis em ouro. Ainda assim, um “padrão-libra” com todas as suas condicionantes, era bem melhor que a não-convertibilidade do escudo para a estabilidade cambial da moeda portuguesa, da mesma forma que a dolarização da economia argentina supera amplamente qualquer benefício que a manutenção do peso argentino possa reter.

Uma vez mais, apesar de a reforma monetária seguir um caminho comum, o objetivo é diverso. Salazar pretendia um escudo forte, que não descapitalizasse o país, para impedir a proliferação da então chamada economia de “vão de escada”, pouco intensiva em capital e, como tal, menos produtiva, mas cuja flexibilidade de adaptava à incerteza na evolução dos preços. Uma moeda que permitisse ao Governo assentar as bases de uma política de crescimento económico robusto, com indústrias bem capitalizadas no longo-prazo graças à estabilidade proporcionada pelo próprio Estado, mantendo, em última análise, a possibilidade do Estado incumprir se as coisas corressem mal. Milei, por outro lado, acredita na eficiência do mercado por si só e simplesmente quer acabar com um instrumento de apropriação e destruição de riqueza que os governos argentinos utilizaram nas últimas duas décadas com impunidade para transferir e destruir riqueza. Dolarização não é a palavra mais adequada. O que Milei defende é que os argentinos utilizem o dinheiro que bem entenderem e não sejam obrigados a utilizar o dinheiro politizado emitido pelo Banco Central da República Argentina. O dólar é simplesmente o candidato mais óbvio a essa função.

O antagonismo nos objetivos significa que a reforma do sistema financeiro vai ser bastante diferente nos dois casos. O que não difere é a necessidade dessa reforma. No caso português a estabilização cambial e das contas públicas trouxe consigo uma valorização dos activos bancários que contribuiu para aumentar a solvência das instituições financeiras. O que faltava era a forma de canalizar as poupanças, em particular a partir do momento em que deixaram de ter no Estado um cliente perene. O principal instrumento de poupança eram os depósitos bancários e a dificuldade para Salazar era convencer a banca privada, em particular a Caixa Geral de Depósitos que detinha a maior parte dos depósitos, a investir esse passivo volátil e de curto prazo, em activos a longo prazo com um risco geralmente superior contra a proverbial prudência bancária. A solução passou pela criação de um banco de fomento, propriedade da CGD, a quem esta emprestava o dinheiro dos depósitos contra uma garantia do Estado Português. Era este banco, a Caixa Nacional de Crédito, quem financiava os investimentos a longo prazo na indústria, agricultura, colónias e na própria administração pública, em particular naqueles projectos “de interesse público”, isto é, preferidos pelos governantes. No fundo Salazar baralhou para dar de novo. Com as reformas, os capitais em Portugal não deixaram de fugir “aos rudes empregos dos campos e das oficinas industriais, para virem recostar-se nos adamascados da junta de crédito público”, como sagazmente observou um anónimo funcionário público português a finais do séc. XIX, simplesmente encontraram uma forma menos daninha de o fazer.

Para Milei a reforma do sistema financeiro é igualmente necessária pois os bancos ver-se-ão privados de muitos dos activos sob a forma de dívida e das garantias que o Estado lhes proporciona. Se a dolarização for para a frente, como é desejo do Executivo, os bancos deixarão mesmo de ter acesso a um banco central que possa recorrer à emissão de moeda para satisfazer a necessidade de liquidez em caso de dificuldade. Isto implica uma grande reconversão, não só a nível comercial, mas também da própria gestão do risco. Em teoria, continuaria a existir a possibilidade de o BCRA poder manter a função de prestamista de última instância, canalizando as reservas em dólares para um resgate bancário em caso de crise, mas, sendo Milei discípulo de Huerta de Soto, não é descabido que os bancos sejam obrigados a manter um coeficiente de caixa de 100% e o Banco Central feche mesmo as portas.

Em jeito de conclusão, o paralelismo entre as reformas de Salazar e Milei serve, não para demonstrar o paralelismo entre a ideologia dos dois indivíduos, como muita propaganda apressada quer fazer crer, mas para reivindicar a autonomia da Economia enquanto ciência onde existem relações de causa-efeito universais, ao contrário do que um certo relativismo supostamente empírico nos quer fazer acreditar. Os políticos podem abusar da emissão de dívida pública. Podem argumentar que está demonstrado que contribui para o crescimento económico, para a criação de emprego, para a eliminação das desigualdades ou até para curar a caspa, sempre que exista um público suficientemente crédulo disposto a ouvir essa mensagem. Isso não converte uma mentira repetida 1000 vezes em verdade.

A verdade é que o abuso da dívida pública mais além de simples instrumento de estabilização da tesouraria, ou emergência em casos de calamidade, vai criando um efeito bola de neve que, a prazo, acaba redistribuindo a riqueza, não de acordo com a necessidade de cada um como propunham os marxistas, mas de acordo com a oportunidade dos que habitam o coração do sistema como muito antes constatou Cantillon. Ao mesmo tempo, dificulta a criação de prosperidade futura e destrói parte da presente. Quando o crédito se acaba, é indiferente se o objetivo do político reformista é criar um Estado intervencionista, protecionista, autarcito e com forte pendor social como foi o caso do Salazar ou um Estado de serviços mínimos que respeita a autonomia e a liberdade dos cidadãos como parece ser a intenção de Milei. A receita económica é sempre a mesma e o principal ingrediente é a vontade de o fazer. No fundo isso é o único que une Salazar a Milei e os distingue da grande maioria dos outros: a vontade de equilibrar as contas públicas quando é sempre mais fácil para quem está no poder fazer o contrário.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/12/10, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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