Fumo Branco

José Meireles Graça                                                                                                                                                      .

Em 10 de Março saberemos se Nicolàs Maduro, na versão ibérica, chegará ao poder. A UE não deixará derrapar demasiado as contas, valha-nos isso. No mais, que venha a Albânia. Também tem boas praias.

Fumo branco já tinha havido, mas mesmo assim realizou-se o conclave e o novo papa, Pedro, foi delirantemente aplaudido pela Curia e pelo ministério da Propaganda da Santa Sé, isto é, a comunicação social quase toda. Sucederam-se as homilias e o desfilar de bispos e cardeais, que as televisões filmaram incansavelmente. A intervalos, áulicos e turiferários disfarçados de analistas explicavam aos crentes o significado profundo dos sermões.

Ouvi de longe o bruaá das celebrações, confiante em que no mercado religioso o antipapa, que pela mesma ocasião celebrou uma aliança com clérigos de outras denominações, pode bem ganhar a adesão da maioria dos fiéis.

Mas esperei que das horas infindáveis de discursos laudatórios do passado, e prenhes de esperanças no futuro, alguma alma caridosa fizesse um resumo do que, em concreto, Pedro se propõe fazer.

No Domingo seguinte ouvi, como costumo fazer em desconto dos meus pecados, o Princípio da Incerteza, e a facunda Alexandra Leitão, muito próxima do Pontífice, anunciou com satisfação algumas medidas.

Fiquei aterrado. Pedro Nuno Santos carrega a justa reputação de ter, em tudo o que se meteu, feito grossa asneira, a maior das quais foi ter “salvo” a TAP com 3.200 milhões de Euros; e não cessou de dar reiteradas provas da sua prodigiosa inépcia, seja no dossier habitação, seja na CP, seja na indemnização à antiga gestora da TAP ou na ridícula compra de acções dos CTT, da qual não estava, mas talvez estivesse, e afinal estava, ao corrente. O que o recomenda não são as obras, é o passado de enfant terrible (pôr as pernas dos banqueiros alemães a tremer não pagando a dívida, disse em tempos com admirável voluntarismo) e as suas credenciais de esquerda – foi ele que navegou com mestria nas negociações com duas vetustezes (uma de camisa de pescador e a outra de sapatilhas), que têm por ele um fraco compreensível.

E então, as medidas? Não me lembrava bem e fui ao sítio do PS. Logo tropecei no nobre propósito de “transformar a economia”. Gente desprevenida acharia talvez que seria reformar o Estado emagrecendo-o, privilegiar a diminuição da dívida pública, escavacar a floresta das regulações sortidas, e toda uma imensa panóplia de medidas para libertar as forças criativas da Nação (perdão pela expressão, a gente às vezes empolga-se e fica uma bocado pomposa). Tanto mais que este dinâmico putativo pai da pátria diz conhecer, por herança, as empresas.

Mas não: do que se trata é de lançar um programa de apoios selectivos para uma década, “num número limitado de áreas estratégicas com potencial de transformação da economia”. Para trás os 132.000 milhões recebidos desde a adesão à CEE, os milhares de empresas apoiadas, o PRR, os inúmeros papers e artigos inflamados de distintos economistas, programas, relatórios, discursos e triunfos. Nada disso chegou porque Portugal não cessa de ser ultrapassado pelos países que ainda há poucos anos estavam atrás de nós na ladeira do desenvolvimento.

Esses países, diz-se, crescem aceleradamente porque partiram de uma base muito baixa, como nós nos tempos do consulado cavaquista, que por isso se distinguiu por convergir a taxas convincentes; e que beneficiam todos de uma antiga “aposta” (localmente, decerto, não usam a palavra inadequada que o socialismo caseiro inventou para cada uma das crenças falhadas com que vem iludindo o eleitorado) na educação. Ou seja, têm vantagens relativas. Convirá lembrar que a velocidade de convergência de Portugal entre 1960 e 1973 não voltou a ser igualada até hoje; que nenhum destes países se pode gabar do nosso clima nem da quantidade de turistas que arribam às nossas costas; que os Israelitas cultivaram o deserto e os Suiços não têm grandes recursos naturais; e que há exemplos de sucesso, e de insucesso, para todos os gostos – o atraso não é uma fatalidade, mesmo que com o PS pareça.

Mas enfim, esqueçamos o passado. Agora com Pedro Nuno tudo vai ser diferente. Ele, e os ministros dele, sabem quais são os sectores e as empresas com futuro e que portanto merecem apoio. E não haverá corrupção, nem amiguismos, nem torrefação de fundos, nem elefantes brancos, nem financiamento de concorrência desleal, nem agências governamentais atulhadas de técnicos inúteis ao “serviço” da indústria. Para realizar este milagre o que é preciso é o diálogo com “os agentes económicos e a academia”. Era tão simples, afinal – o que tem faltado é diálogo. E aquele foragido Guterres, que dialogava incansavelmente, não sabia bem para quê, mas Pedro sabe. Presumimos que na empresa do pai, onde recolheu os ensinamentos que lhe viriam a ser úteis para a sua epifania desenvolvimentista, se devia dialogar muito, nos intervalos do fabrico de máquinas para sapatos.

Sabe Pedro, sabe Alexandra e toda a imensa turba socialista das apostas nisto e naquilo – como se a economia fosse um jogo de sorte e azar.

Mas há mais: o PS vai propor aumentar o salário mínimo para “pelo menos 1.000 euros até ao final da próxima legislatura, em 2028”, associando esta subida, em futuras negociações em concertação social, “ao aumento dos salários médios”.

1.000 euros são uma lamentável falta de ambição. Uma vida com um mínimo de conforto agora não é possível com menos de 2.000, que em 2028 terão de ser muitos mais. E os salários médios, que actualmente ainda não são objecto de mais regulação do que a que resulta de contratos colectivos, bem podem ser corrigidos por decreto se os patrões na concertação se mostrarem recalcitrantes. Pedro é dinâmico e determinado e as empresas têm muito mais recursos do que os que evidenciam as suas contas de exploração. Verbi gratia o caso daqueles empresários cujos filhos se passeiam de Maseratis ou Porsches.

O novel Secretário-Geral anunciou a intenção de colocar à discussão a concretização de uma reforma das fontes de financiamento do sistema da Segurança Social, alegando que “a sustentabilidade futura do sistema não deverá depender exclusivamente das contribuições pagas sobre o trabalho”.

Julgávamos todos que o antigo ministro, hoje senador, Vieira da Silva, tinha salvo definitivamente a Segurança Social. Vozes cépticas, porém, sempre disseram que com a evolução demográfica era apenas uma questão de tempo até o sistema implodir ou obrigar a quantidades crescentes de transferências do OGE ou as pensões serem reduzidas talvez até metade do último ordenado ou a idade para a reforma ser consideravelmente aumentada. Pedro Nuno não quer nada disso e pelo contrário deseja o crescimento das pensões e a redução do desconto para a SS por parte dos trabalhadores, que é de 11% (a quota da entidade patronal, que é de 23,75%, também é em parte paga pelo trabalhador porque semelhante encargo puxa os salários para baixo – um ponto que não me dou ao trabalho de explicar).

O truque vai consistir em aumentar a contribuição das empresas com elevado valor acrescentado mas poucos trabalhadores, o que se afirma ser injusto. O raciocínio é vizinho da anedota: isto equivale a dizer que ter um elevado valor acrescentado (e, presumivelmente, produtividade e lucros, que já são objecto de pesada tributação) é um objectivo que deve ser castigado – o lucro é pecado e o que é preciso é também nas empresas caminharmos no sentido do imposto progressivo.

Há mais, muito mais, que enche Alexandra Leitão de orgulho e satisfação – diz-se que é a ideóloga do partido.

Em 10 de Março saberemos se Nicolàs Maduro, na versão ibérica, chegará ao poder. A União não deixará derrapar demasiado as contas, valha-nos isso. No mais, que venha a Albânia. Também tem boas praias.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2024/01/19, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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