O congresso do CDS

José Meireles Graça                                                                                                                                                                         .

As direitas identitárias condenam-se a ser uma capela, o que significa no nosso regime democrático que oferecem o poder ao PSD no melhor dos casos, e no pior às esquerdas.

Como a todos os últimos, fui ao Congresso do CDS e passei muito mais tempo cá fora do que lá dentro. Pela vida interna e pelas carreiras tenho um interesse menos do que moderado; é fatal como o destino que cada orador, nos três minutos de que dispõe, abunde nos chavões, repise ideias, e faça prova de vida; e o apelo de uma cigarrada e uma boa conversa é frequentemente irresistível.

Não o digo com nenhuma espécie de real ou afectada superioridade: para ser democrata não é preciso achar a democracia perfeita (pelo contrário: é uma abominação só tolerável porque qualquer alternativa é pior) e a paciência que escasseia para ouvir discursos não ofusca a certeza de que eles fazem parte, e são essenciais. O militante vence a prova de fogo da sua própria timidez, dá testemunho público da sua pertença e ventila as suas preferências de pessoas ou políticas. Um partido vivo tem de ter disso, e o CDS em tal quantidade que, a dada altura, o presidente do Congresso já implorava que alguns dos inscritos para falar (70, salvo erro!) se abstivessem, porque senão a coisa prolongava-se até para aí as 5 da manhã. Muitos nesta altura já chamavam a atenção para o óbvio, que até talvez a eles estivesse a surpreender: o partido dado como moribundo tinha afinal uma singular vitalidade.

A dado ponto, entre outras mensagens videogravadas, apareceu a de Paulo Portas, fortemente aplaudida. Portas nunca fez um mau discurso na vida, suponho porque, para além das suas qualidades naturais para o propósito, prepara cuidadosamente o que vai dizer. E disse o que convinha, com uma sábia dosagem de história, razões para a união e esperança no renascimento.

Dos antigos dirigentes ainda vivos, Ribeiro e Castro disse nada, e outro tanto fizeram Assunção Cristas e José Rodrigues dos Santos, que creio também não estiveram presentes. Porém, Manuel Monteiro apareceu e discursou. Fez bem, e bem fez a direcção do Congresso em lhe dar a liberdade de falar durante o tempo que quisesse.

Essa liberdade usou-a liberalmente porque fez um discurso com mais ou menos a mesma extensão da que viria a ter a do presidente do partido, à volta de três quartos de hora. E o discurso foi precisamente o de um líder que não é, explicando detalhadamente em que consiste a verdadeira alma do CDS, o que o CDS não tem sido mas deveria ser, as bandeiras que deve erguer sem complexos, o seu papel dentro da coligação, como deve crescer e o que o distingue do Chega, cujo maior pecado parece ter sido o de pôr em surdina as bandeiras que roubou ao CDS, para o efeito de, tendo-as no bornal mas delas não fazendo alarde, aldrabar o eleitorado.

Esta explicação do sucesso do Chega tem um lado sumário e quase cómico sobre o qual não vou abundar. E como o discurso foi entusiasticamente aplaudido analistas políticos que infelizmente não foram exornados com a mesma lucidez com que a Divina Providência me bafejou declararam Manuel Monteiro um vencedor.

É-o de facto, no sentido de ter sido bem acolhido e ninguém o “desejar empurrar”. Nesta altura da vida do partido, porém, qualquer dos outros dirigentes teria sido bem acolhido, se orasse com veemência e confessasse convincentemente o seu amor à “marca CDS”. Este Congresso foi, entre outras coisas, o do alívio: quem lá estava não se passou nem para a IL nem para o Chega nem para a inércia, precisava que lhe dissessem que não era militante de um esquife.

O CDS foi durante décadas o partido-cadinho de toda a direita portuguesa, isto é, tudo o que está da social-democracia para a direita. E como a direita não existe, o que existe são direitas, era natural a sangria que a IL e o Chega provocaram, o que não é a mesma coisa que dizer que aqueles dois partidos foram feitos apenas de trânsfugas. Para cada um deles há limites: para o primeiro o facto de haver uma maioria sociológica de dependentes do Estado (reais e potenciais) e para o segundo a chegada ao Poder, cujo afastamento lhe permite demagogicamente oferecer tudo a todos, incluindo soluções simplistas para problemas complicados como o da corrupção ou Justiça.

Estou porventura em algumas questões mais próximo de Monteiro do que de Portas: a maneira de encarar a EU é uma, por exemplo. E no que toca à forma como este último olha para as redes sociais, ou como foi conduzido o “combate” à Covid, por exemplo, a minha distância dele é considerável. Já no que toca à lei que regula o abortamento, por exemplo, sei que Monteiro não sigo e a posição de Portas não conheço porque, que eu saiba, nunca a considerou identitária do partido nem achava que semelhante assunto comovesse o eleitorado, que se pronunciou há muito e não dá sinais de o querer retomado.

É aqui que mora o ponto: é que o que separava Freitas do Amaral e Portas dos outros dirigentes, e que se traduziu no relativo sucesso dos dois, independentemente das circunstâncias históricas que envolveram a acção de cada qual, é que viam a direita como significando liberdade económica, desconfiança do Estado intrusivo mas respeito das suas funções tradicionais, conservadorismo sem intransigência absoluta, e respeito pela identidade católica do país mas sem seguidismo pela doutrina da Igreja. Isto e pouco mais. O resto ficava por conta do perfil de cada militante.

As direitas identitárias condenam-se a ser uma capela, o que significa no nosso regime democrático que oferecem o poder, e portanto as hipóteses de evolução e mudança, ao PSD no melhor dos casos, e no pior às esquerdas.

Pergunta-se: há espaço, apesar do Chega, para o CDS? E há espaço, dentro do CDS, para pessoas que julgam ser detentoras da marca registada do partido, que calha coincidir com os temas que imaginam ser de índole civilizacional e identitária?

Ambas as respostas são afirmativas: No primeiro caso porque há pessoas que suspeitam que o Chega é, para já, tudo e o seu contrário (em matéria de regulação económica, impostos, despesa pública, solvabilidade do país, por exemplo), donde há muita gente desconfiada e que, ademais, sendo de direita, não aprecia recuos civilizacionais como nos voluntarismos acéfalos da alteração das molduras penais; e no segundo porque que cada qual diga com a veemência que entender aquilo que entenda foi o que sempre aconteceu no CDS – desde que o líder perceba que o seu papel não é acicatar divisões mas congregar.

O Congresso foi notável com Monteiro e outros, mas não por causa exclusiva de Monteiro. Que este seja um excelente orador acrescenta ao partido e acrescentou ao brilho da efeméride; que se lhe comprasse a totalidade do discurso diminuiria um e empanaria o outro.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2024/04/23, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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