O povo é sereno

José Meireles Graça                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    .

Os desmandos governamentais são preocupantes; mas levar as personagens desta ópera bufa a sério é atribuir-lhes a importância que não têm, por serem apenas cartas sebentas de baralho velho e marcado.

As duzentas ou trezentas mil pessoas que estão mais interessadas no país político do que nas vidas dos famosos e nas trincas e mincas das transferências dos craques do futebol andam por estes dias pasmadas: No Governo entra-se e sai-se como num apeadeiro e quem sai vai envolto numa nuvem de moscambilhas, abusos e corrupções sortidas.

Os casos são tantos que pensadores profundos falam em crise, esgotamento da solução governativa, malefícios da maioria absoluta e autofagia do PS.

Pasmados uns e divertidos outros: estou neste segundo grupo e quase que chego a confessar-me grato porque levo dias a aliviar-me de piadas foleiras nas redes. Só os sapatos Louboutin que Alexandra Quinhentos Mil Réis usou na tomada de posse renderam extensas trocas de impressões esparramando veneno ao longo de dois dias. Fiquei sabendo que aquilo era um modelo de freiras, que custava mais de 600 Euros e que melhor faria a governante em optar, dentro da mesma marca e preço, por uns saltos tipo agulha média, mesmo que o resto não estivesse a condizer – e isto é apenas uma amostra.

Os desmandos governamentais são preocupantes; mas levar as personagens desta ópera bufa a sério é atribuir-lhes a importância que não têm, por serem apenas cartas sebentas de um baralho velho e marcado.

Até onde a vista alcança, este Governo não está esgotado. Marcelo nem quer ouvir falar de dissolução do Parlamento (é almirante de um navio de águas paradas e mansas, em águas revoltas fará, atarantado, soçobrar a embarcação no primeiro baixio), a oposição mais consciente não ignora que sem que a economia se deteriore mais, como é provável que aconteça, o eleitorado dará ao nédio Costa nova vitória, nem que para isso seja preciso este dar mais um rebuçado aos dependentes do Estado tirado do excesso de receita fiscal, e o povo está sereno.

O suposto cansaço do nosso Primeiro só se traduziria em abandono se este tivesse à sua espera uma sinecura na Europa, onde cabem todos os treteiros inúteis e onde a sua consagrada habilidade para serpentear no meio do leva e traz conspirativo e manipulador poderia ser posta a render. Mas não, parece que já estão servidos de estadistas desta igualha. De modo que Costa está, e fica, há que ter paciência.

Resta a pergunta: Por que razão o número de casos, e abandonos sucessivos (uma dúzia em nove meses), é sem precedentes?

Toda a gente concorda em que há um esgotamento e não pouca entende que a maioria absoluta é muita má conselheira.

Mas qual esgotamento? É crível que após uma vitória absoluta e decorrido menos de um ano a energia que supostamente existia antes se tenha como por milagre esfumado? E quanto à maioria absoluta ela só seria por si indutora de “maus” comportamentos se a oposição dentro do governo fosse mais eficaz do que fora. O que é uma contradição porque quem está dentro apoia, e apoia porque não está fora, não tendo portanto nenhum incentivo para abalar o edifício.

Daqui decorre que não há mais casos de corrupção, atropelos e descaminhos, o que há é mais denúncias. E essas denúncias só podem vir de quem caiu fora do barco, isto é, o PCP e o Bloco.

Pode pensar-se que tudo isto é anómalo. Mas não é: numa economia que não cresce as oportunidades são poucas, e portanto os três caminhos possíveis para quem está a começar a vida são a emigração, os salários exíguos ou a manjedoura do Estado. E esta, para lugares de nomeação política, é que tem melhor passadio. Quem está é assim objecto de inveja e ressentimento, que vem sobretudo de quem deixou de estar.

O PCP e o Bloco têm simpatizantes nas polícias, na magistratura do MP, nos bancos, na Autoridade Tributária, e em toda a parte; e há alguma imprensa (que a dita “séria” despreza) receptiva a pôr a boca no trombone. De modo que não há nenhuma razão para pensar que houve uma súbita degradação, apenas estamos um pouco menos cegos.

De resto, o edifício da democracia vem, desde 1976, num crescendo de intervencionismo estatal na vida económica, nos comportamentos, na criação de dependentes do Estado e em todas as esquinas da vida. Fosse o país calvinista, ou houvesse um sentido de missão partilhado (que de todo o modo não poderia ser mantido indefinidamente), ou fosse a nossa tradição outra, e a realidade seria outra também. Assim, resignemo-nos: socialismo, tenha o grau que tiver, quer dizer entre nós corrupção. E as medidas que Costa já decidiu tomar (isto é, a criação de um circuito para garantir maior transparência e confiança de todos no momento da nomeação de membros do Governo) são de rir: é de prever que para ser nomeado seja necessário apresentar uma certidão de nascimento de narrativa completa (para atestar que o candidato tem mais de 18 anos, é filho de gente idónea e casado com pessoa das melhores proveniências), um cadastro limpo e uma certidão negativa do Ministério Público. E mesmo assim sem garantias: vai-se a ver e o moço ou a moça, quando autarcas ou outra coisa qualquer, fizeram tropelias do arco da velha que só no futuro se saberá.

Gargalhada é aliás o melhor dos comentários. Anseio pela próxima escandaleira bem sumarenta, que eu e os meus amigos reais e virtuais apreciamos distrairmo-nos.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/01/10, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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