Trumpofobia e trumpofilia

José Meireles Graça                                                                             .

Deixem lá em sossego o perfil intelectual e psicológico de Trump, isso pode alimentar-nos a repulsa apenas na medida em que nos limita a compreensão.

De Marcelo diz-se que é muito inteligente, culto, habilidoso e querido do povo que lisonjeia, ao qual passa a mão pelo lombo patrioteiro e amante de musiquetas e telenovelas. Tudo verdade. E todavia, com excepção de jornalistas que vivem das rodilhices da política, e dos políticos que são obrigados a tomar em linha de conta o que Sua Excelência diz, ninguém de consequência o leva a sério porque dali não vem nem nunca veio um pensamento com alguma profundidade, uma ideia com alguma originalidade e um desígnio que não seja a vulgata do europeísmo e das ideias que andam no ar da moda do extremo-centro.

De Trump diz-se que é um grosseirão, ignorante e bronco, com educação de carroceiro, gostos de empreiteiro e deslumbramento de pato-bravo. Tudo verdade.

O primeiro não fez nem uma ruga no lago da história do país democrático, e ainda menos no mar da história tout court. O segundo agita as águas do mundo, pôs a Europa em convulsão, quer pôr Israel a dar um já chega! no terrorismo palestiniano, acabar prestes com a guerra da Ucrânia, fazer as reformas do Estado que a direita impotente, que é quase toda, anda há décadas a dizer que vai fazer, e mandar para os cafundós da irrelevância a cultura woke, substituindo-a pelo senso e a tradição, e com tudo isso restaurar a grandeza dos EUA, que acha, e está, em risco.

Um abismo separa os dois homens, tanto neles próprios quanto na importância relativa dos respectivos países, quanto nas circunstâncias. De comum têm apenas o terem sido limpamente eleitos.

Quer dizer que o eleitorado português é lúcido porque elege um intelectual capaz de fazer nada e o americano estúpido porque elege um bully aldrabão com vontade de fazer muito?

Não. Foram ambos eleitos porque respondem a necessidades do eleitorado. E o que isto significa é que o que eles são interessa pouco e o que eles defendem muito.

Donde, deixem lá em sossego o perfil intelectual e psicológico de Trump, isso pode alimentar-nos a repulsa apenas na medida em que nos limita a compreensão.

Para o compreender comecemos por um ponto: Porque razão uma faixa de pessoas na Europa, incluindo entre nós, aprecia o que está a fazer? Um amigo meu da variedade ide-vos catar mais o que pensais fez um resumo indicativo (que se refere também à guerra da Ucrânia, já lá vou), em tom chocarreiro e que, porque o conheço bem, sei que não é para interpretar literalmente, mas suficiente para se perceber a tónica:

“A guerra que me interessa é cultural. É essa guerra que combato, literalmente, diariamente na universidade. Nessa guerra cultural, o Putin é meu aliado, o Trump é meu aliado, o Vance é meu aliado, o Órban é meu aliado… a Europa é minha inimiga. Sou, sem reservas, pró-Putin… entre ele e a comissão europeia, prefiro o Putin; entre o Guterres e o Putin, prefiro o Putin; entre o Starmer e o Putin, prefiro o Putin; entre o Sanchéz e o Putin, prefiro o Putin. Mas respeito quem não goste do Putin. Não vejo é qual é o problema do Putin quando comparado com gente que não distingue um homem de uma mulher. Não vejo mesmo…”

Esta lista podia incluir cancelamentos, educações para a cidadania, imigrações desregradas e um sem-número daquelas coisas que a direita boazinha, porque tolera, sufraga, e que constituem o corpus do que se chama cultura woke, que é a designação inventada para o esquerdismo insidioso. E como vivemos em sociedades democráticas, tenham lá paciência (e contenção para não cancelarem o resultado de eleições, como na Roménia, ou fecharem a matraca a desalinhados, como se planeia para as redes) se houver um número crescente de eleitores “extremistas”.

Este caldo alimenta a desconfiança sobre a razoabilidade da continuação de uma guerra sem fim à vista, que prossegue sob pretexto de Putin ser um demónio, Zelensky um santo e Trump um valentão ridículo.

Já eu acho Putin um czar agressivo e expansionista, Zelensky um herói não necessariamente ornado de qualidades de senso e Trump um epígono da América isolacionista.

Que Trump é um isolacionista, porém, não é uma opinião, é um facto. Que, na sequência disso, não está disposto a bancar o pato da NATO também parece evidente, e é aliás uma inclinação que já vem de anteriores presidentes. E que quer acabar com a guerra da Ucrânia e o seu sorvedouro de dinheiro resultou evidente da famosa conferência na Sala Oval, glosada em mil artigos indignados com a humilhação de Zelensky e a grosseria dos anfitriões.

Também fiquei indignado. Excepto pelo facto de que numa guerra onde todos os dias morrem e se estropiam soldados, e se destroem bens e infraestruturas, a indignação de quem não está disposto a mandar os seus filhos para lá, e não tem ainda consciência do que lhe sai do bolso para a alimentar, não ser a melhor conselheira.

De modo que peço desculpa por não dar nada para o peditório da guerra de trincheiras de paleio e reservar a minha opinião para quando souber:

Qual é exactamente o plano da administração Trump? Porque um acordo de paz implica concessões de ambos os lados, mas se o agressor retirar um benefício líquido demasiado importante pode isso ser o choco de guerras futuras – na Polónia, nos países bálticos, na Escandinávia, até mesmo em Taiwan se o isolacionismo americano der sinais de valer tudo na construção multipolar de esferas de influência.

As garantias de defesa são o quê? Investimentos americanos significativos na Ucrânia, por si, são um óptimo dissuasor, mas provavelmente insuficiente. Porém, a ideia de que é a UE que pode decidir que garantias os americanos devem prestar é uma boa receita, com Trump, para não se chegar a lado algum.

O plano dos países europeus da NATO de reforçarem as suas despesas militares é um bom plano, quer a NATO se desfaça quer não – si vis pacem para bellum e toda essa espécie de coisas.

Finalmente, o esbracejar de Starmer e Macron, com posições centrais porque representam países com a bomba, é por si compreensível mas suscita alguma estranheza porque ambos protestam ter boas relações com Trump. O que permite supor que talvez isso não seja apenas (boa) política, mas antes um acordo debaixo da mesa para nas negociações com Putin Trump ficar com o papel do polícia bom e os outros com o de polícia mau.

Não sei, realmente não sei, e duvido que entre os meus amigos putinistas de circunstância que querem acabar com a guerra dê lá por onde der; e os europeístas frenéticos que são completamente a favor de que continuem a morrer ucranianos: alguém saiba.

Quando tudo clarear também vou para as trincheiras da treta, de canhangulo.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2025/03/05, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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