A extinção dos Bancos Comerciais? (Parte III)

Ricardo Dias de Sousa                                                                                                                                           .

Os bancos solventes são todos iguais, mas cada banco insolvente é insolvente à sua maneira.

Na primeira parte desta série de artigos, vimos que qualquer banco comercial encerra em sí a semente da sua destruição, já que a viabilidade do negócio depende de tratar os depósitos como empréstimos de longa duração. Na segunda, tentámos perceber porque a sociedade aceita viver sob a ameaça de falência e como a regulação não pode, por si só, resolver o problema. Nesta terceira parte vou tentar ilustrar como se manifestou esta instabilidade na crise mais recente.

Como tínhamos explicado, a gestão de uma rede de captação de depósitos equivale, grosso modo, a financiar-se a taxa fixa. Com a subida das taxas de juro surgiu a oportunidade de os bancos aumentarem os seus resultados. E foi isso que os investidores em bolsa perceberam quando as taxas de juro subiram de forma abruta a partir do segundo trimestre do ano passado. Na Zona Euro as acções dos bancos registaram uma subida que chegou a ser, em média, 30 % superior à generalidade das empresas cotadas. Os resultados operacionais dos bancos para o ano de 2022 corroboraram esta aposta: a diferença entre o juro recebido dos empréstimos concedidos e o juro pago pelos empréstimos obtidos, conhecida no jargão do sector como net banking interest, registou no primeiro trimestre deste ano, aumentos de entre 50% e 100% na generalidade dos bancos europeus, em comparação com o período homólogo do ano passado. E, no entanto, dois terços dessa melhor performance das acções do sector bancário já desapareceu desde Março. Aparentemente os investidores passaram a preterir o sector bancário apesar dos bons resultados registados.

Esta mudança de sentimento não é imune ao sucedido nos Estados Unidos com a falência do Silicon Valley Bank e do Signature Bank, a venda compulsória do First Republic (e na Europa do Credit Suisse) e a corrida aos depósitos (talvez exagerada pela imprensa, quem sabe?) nalguns pequenos bancos regionais norte-americanos. Parafraseando Anna Karenina, os bancos solventes são todos iguais, mas cada banco insolvente é insolvente à sua maneira. No entanto, o caso do SVB é de livro de texto, exemplo esquematicamente dado na primeira parte desta série. Isto significa que há ilações a retirar para todos.

A particularidade do SVB residiu essencialmente na homogeneidade da sua base de depositantes. Como o nome indica, o banco operava na região de Silicon Valley servindo a comunidade de empresários, fiduciários, visionários, salafrários e residentes vários da vanguarda tecnológica do planeta, tanto em contas a nome individual, como das empresas que estes criaram, compraram ou ampliaram. Nos últimos anos, a expansão monetária orquestrada pelos bancos centrais empurrou as taxas de juro para território nulo ou mesmo negativo. Isto permitiu que praticamente qualquer projecto de investimento pudesse aparentar ser lucrativo, mesmo quando esse retorno fosse apenas esperado num futuro longínquo ou (quem sabe?) no mais-além. Assim, os empreendedores tecnológicos do Valley tiveram acesso fácil a biliões de dólares de investidores que faziam fila para os meter nas suas mãos de forma quase incondicional. Deste modo, os bancos em geral e o SVB em particular, encontraram-se na paradoxal e inconfortável situação de não ter a quem emprestar o dinheiro angariado pela sua rede de balcões. Um pouco como a exchange FTX (que como expliquei num artigo aqui há atrasado, em muitos aspectos se comportava como um banco), o SVB viu-se numa situação em que encontrou demasiado dinheiro depositado e poucas oportunidades para o aplicar naquilo que era o seu negócio tradicional, emprestar a empresas do sector tecnológico. Ao contrário da FTX, o SVB não andou passar esse dinheiro a empresas dos seus donos recebendo em troca cripto moedas criadas com o propósito de manter a ilusão de que o dinheiro ainda lá estava. Pelo contrário, decidiu emprestar esse dinheiro ao devedor mais seguro do planeta, o Governo dos Estados Unidos da América, comprando obrigações do tesouro.

Sendo um pouco mais complexo que o esquema que apresentei na primeira parte, o resultado não foi muito distinto. O SVB comprou obrigações do tesouro norte-americanas (julgo que com um prazo médio de 10 anos e uma duração de 6 ou 7) com o dinheiro dos depósitos, para ganhar a diferença entre o juro que pagava por estes – zero ou quase – e o que recebia dos cupões das obrigações (dois ou três por cento). Quando as taxas de juro começaram a subir, o preço de mercado das obrigações em carteira caiu exactamente como exemplificado. O truque para dormir tranquilo era, como vimos antes, considerar os depósitos como empréstimos a longo prazo para assim não necessitar contabilizar as obrigações no activo ao preço de mercado (marked-to-market). Mas para isso era preciso detê-las até à maturidade, momento em que o Tio Sam passaria um cheque pelo total do valor emprestado.

Só que, com a subida das taxas de juro, as oportunidades para encontrar novos unicórnios também decaem, tão ou mais depressa que os preços das acções dos unicórnios já existentes. Desde o máximo esplendor do verão de 2021, muitas acções das principais empresas do sector (Lyft, Pinterest, Peloton, Snap, Just Eat e um largo etc.) perdem mais de 70% da sua valorização. Quer dizer, o dinheiro dos investidores agora é um bem demasiado precioso para desperdiçar. Os dias em que se organizavam novas rondas de financiação (leia-se, aumentos de capital) de cada vez que os unicórnios precisavam de torrar mais dinheiro oferecendo produtos e serviços abaixo do custo real para ganhar quota de mercado e novos clientes acabaram há quase dois anos. Uma eternidade nos mercados financeiros. Agora têm que se governar com o fundo de maneio disponível, muito dele depositado em bancos como o SVB. À medida que os depositantes começaram a retirar os depósitos, o SVB foi sendo obrigado a vender parte das obrigações e, com a subida das taxas de juro, registar o prejuízo. Com um buraco de 15% no valor do activo, procuraram realizar um aumento de capital, apostando que os investidores não iam deixar passar a oportunidade de entrar num negócio com quatro décadas de sucesso comprovado e apenas um pequeno percalço no presente. Que havia gente disponível para valorizar a marca, a rentabilidade e o modelo de negócio. Não anteciparam que a velha máxima de Bagueot continuava em vigor 150 anos depois: o crédito de um banqueiro desaparece no momento em é necessário demonstrar o mérito de o receber. Para ser justo o SVB até chegou a garantir o aumento de capital, mas a deterioração das condições obrigou ao cancelamento da operação. Para complicar a situação, o anúncio do aumento de capital sinalizou publicamente as dificuldades de tesouraria do banco, agravando ainda mais a situação, já de si muito grave.

O problema não foi a aparente irresponsabilidade dos banqueiros do SVB, o problema foi que a sua conduta irreprovável na gestão deste negócio nas últimas quatro décadas, e as melhores práticas bancárias nos últimos quatro séculos, lhes davam todas as garantias de que o que faziam era correcto. O SVB investiu tempo e dinheiro ao longo dos anos para ser um parceiro estratégico das empresas e dos investidores de Silicon Valley, e julgou que tinha criado laços fortes e relações recíprocas com a comunidade. Certamente os seus banqueiros não esperavam que, num momento de fragilidade, os gestores e empresários locais corressem a levantar o dinheiro tão absolutamente essencial para o banco se manter em actividade. Julgaram viver no mundo magistralmente ficcionado de Do Céu Caiu Uma Estrela. Talvez em 1946 as coisas ainda funcionassem assim, mas em 2023, qualquer sentimento de lealdade que os clientes pudessem albergar para com o SVB foi rapidamente dissipado perante o dever fiduciário de não perderem o dinheiro que as suas empresas necessitavam para funcionar, incluído o pagamento dos salários a milhares dos seus trabalhadores. No dia 8 de Março, quarta-feira, a gestão o banco anunciou que tinha vendido 21 bilhões de dólares de activos e tinha garantido um empréstimo de outros 15 bilhões para satisfazer os pedidos de levantamento de depósitos. Julgava poder fazer face a todas as demandas. Mas, no dia seguinte, quinta-feira, os depositantes correram ao banco e levantaram outros 42 bilhões. Sexta-feira o banco foi colocado à disposição do FDIC (o seguro de garantia dos depósitos). A administração do banco até tinha conseguido reunir, de entre os activos que tinha em carteira, um conjunto de empréstimos a empresas do sector tecnológico, com bom historial de crédito e a taxas de juro atractivas, para colocar como colateral na Reserva Federal e conseguir, deste modo, fundos adicionais para fazer face aos levantamentos. Mas a diferença horária entre a Califórnia e a Costa Leste fez que, quando o SVB finalmente conseguiu mandar a documentação para a FED, o guichet para receber o processo e conceder o empréstimo já tivesse fechado. Depois de quase conseguir um aumento de capital, o SVB quase conseguiu um empréstimo do banco central. Ignoro se seria suficiente para reverter a situação em que se encontrava, mas o drama serve para ilustrar a afirmação de que cada banco insolvente é insolvente à sua maneira. No caso do SVB, salvando-se de se afogar para morrer na praia.

O que este episódio nos tenta dizer, por um lado, é que com clientes sofisticados, transmissão vertiginosa da informação através de meios de comunicação (pessoal e social) e interface electrónico com os clientes que permitem a imediatez das operações bancárias, o velho modelo de investir no custo fixo das redes de captação de depósitos pode tornar-se obsoleto. Por outro lado, o FDIC, que em teoria apenas tinha que garantir os depósitos inferiores a 250,000 dólares, que não superavam a décima parte da totalidade no SVB, decidiu que era necessário garanti-los na sua totalidade. Na prática, ficamos a saber o que os reguladores provavelmente sabiam há muito tempo: que o sistema financeiro global tem que garantir que os depósitos – todos os depósitos – são depósitos, e não empréstimos a taxa fixa aos bancos. Se os reguladores deixarem de confiar na capacidade dos bancos para manter a solvência podem procurar alternativas aos depósitos bancários. Este movimento em pinça é uma ameaça real, que põe em perigo acesso aos depósitos por parte dos bancos comerciais. As consequências são, em grande parte, imagináveis. Mas, o que se pode vislumbrar fica para o quarto e último capítulo desta saga.

 

Artigo publicado pelo Observador em 2023/06/23, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.

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