Teresa Nogueira Pinto & José Bento da Silva .
Daniel Kahneman, prémio Nobel da Economia, faleceu a 27 de Março de 2024. Mas só agora soubemos que faleceu por suicídio assistido. A razão? Sentiu que “era tempo de partir”, conforme explicou num email enviado a Katarzyna de Lazari-Radek e Peter Singer dias antes da data que o próprio havia escolhido para colocar fim à vida, tornado público no artigo que estes publicaram no New York Times.
Aos 90 anos de idade, com uma carreira notável, Daniel Kahneman, não estando obviamente no primor da vida, estava ainda bastante saudável e lúcido. O momento “para partir” foi por isso decidido, a fazer fé no testemunho do próprio, com base em noções vagas e ambíguas: a ideia de que a vida se completou e que é tempo, aos 90 anos de idade, de evitar as “misérias e indignidades dos últimos anos de vida”. Não sabemos como é que alguém determina o momento em que a sua vida ficou completa; também não sabemos que misérias e indignidades caracterizam os últimos anos de vida, a não ser, claro, que classifiquemos como indigna e miserável uma vida dependente dos cuidados de outros.
E é sobre esta definição de “outros” que talvez valha a pena reflectirmos. Que “outros” são esses? A família ou cuidadores profissionais? No seu artigo, Katarzyna de Lazari-Radek e Peter Singer referem estudos que apontam para alguns factos preocupantes: 42% dos que pediram suicídio assistido sentem que são um fardo para os seus; 89% referem que não têm autonomia; 88% afirmam que não têm actividades que tornem a vida agradável; e 64% afirmam terem perdido a dignidade. A solidão na velhice, a ausência de “outros” que não os cuidadores profissionais, é também um problema já tratado de forma exaustiva em vários estudos. Tudo parece concorrer para a conclusão de que a substituição dos “outros-família” pelos “outros-profissionais” gerou, junto dos mais velhos, a ideia de que a vida está agora completa.
Uma vida completa é uma vida em que o momento da substituição dos “outros-família” pelos “outros-profissionais” determina “o tempo de partir”. Ou, como disse Daniel Kahneman no email citado acima: “If you look at the universe and the complexity of the universe, what I do with my day cannot be relevant.” Esta afirmação faz-nos recordar Romano Guardini, teólogo Católico, na sua reflexão sobre a Liturgia, publicada em português com o título “O Espírito da Liturgia”. A Liturgia (por exemplo, a Eucaristia) é por vezes encarada como aborrecida, como um mero teatro, uma sequência de rituais que informam um processo que parece não ter significado. A Liturgia, pelo seu carácter alegadamente aborrecido, é uma belíssima porta de entrada para uma reflexão sobre aquilo que aparentemente não importa.
Sucede que uma das consequências da modernidade é a obsessão com a utilidade, com “aquilo que importa”, que deve ser sempre mensurável, quantificável. Ao reduzir tudo a uma função de utilidade, a modernidade fez o Homem perder tudo aquilo que lhe providenciava sentido. Mas tudo aquilo que providencia sentido ao Homem tende a não ter importância aparente – como refere Romano Guardini, há coisas cujo sentido não é perceptível porque escapam à contingência do que é local e do que é temporal. Isto é, são universais, mas não porque se aplicam a todo o universo, mas sim porque nos tornam, enquanto pessoas, membros de um “corpo” com o qual partilhamos um destino que nos transcende. Assim sendo, a Liturgia é universal porque nos torna membros de algo que nos transcende. E não porque todos seguimos o mesmo ritual sem aparente sentido.
A modernidade, cuja excrescência é o hiper-liberalismo referido por John Gray, reduziu as pessoas a indivíduos, os “outros-família” a “outros-cuidadores profissionais” e a “Liturgia de fim de vida” (expressão nossa) a uma função de utilidade económica. A vida está completa quando aquilo que o velho gasta em cuidados de final de vida supera o aparente contributo do velho para a sociedade. Ao reduzir a vida ao utilitário, o momento de partir é então aquele em que o balanço contabilístico da vida entra em déficit. E porque o velho já não é parte activa de um corpo social (corpo esse cada vez mais atomizado, diga-se), todos os rituais litúrgicos de fim de vida, como usar fraldas, tornam-se indignos e sinalizam uma vida miserável, que já não vale o custo de ser vivida.
A modernidade, que é o tempo que nos calhou viver, não sabe o que fazer com os velhos porque, na sua obsessão pela busca do indivíduo, do mérito, do progresso, reduziu tudo o que conseguiu a uma função de utilidade e tudo o que não conseguiu a uma mera opção individual mascarada de liberdade. Uma das consequências da modernidade e do socialismo (inclusive na sua versão “democrática” que tomou conta da Europa) é que o Estado-providência é a terciarização do cuidado – dos bebés, das crianças, dos velhos, de todos, todos, todos. O Estado toma conta de nós desde que nascemos até que fechamos os olhos. Tudo isto tem um custo: a redução da vida a um balanço contabilístico.
Neste sentido, e recorrendo de novo a Romano Guardini, o mundo moderno deixa de ser um mundo feito à nossa medida. O que parece paradoxal, porque a modernidade é também a marcha pelo controlo da natureza. Só que o “mundo anterior” era um mundo mais humano. Um mundo que não nos pedia que fossemos como Deus, capazes de decidir sobre a vida e a morte, mas que nos garantia um lugar de destaque na Sua criação. Daqui até ao poder de determinar a temporalidade do “fim de vida”, retirando a esse período uma Liturgia própria agora classificada como indigna, foi um passo.
No processo, tudo o que era aborrecido, indigno, revelador da miséria humana, foi eliminado. Mas, voltando a Romano Guardini, a Liturgia que informava a vida, com todos os seus momentos e rituais próprios, era o resultado de séculos de escolhas – sabíamos por isso que algo ali funcionava, embora não soubéssemos porque é que funcionava. Intuíamos que o cuidado, entre gerações, dos mais novos e dos mais velhos funcionava, era melhor. Mas não sabíamos bem porquê. No processo de substituição disto tudo, que a modernidade encetou, acabámos sem encontrar um substituto à altura. Os “outros-cuidadores profissionais” não são de facto o mesmo que os “outros-família”. E até sabemos porquê, mas o custo de “voltar atrás” seria desequilibrar a forma contabilística em que a modernidade e o Estado transformaram a vida. Não estranha por isso que os velhos tenham decidido morrer mais cedo.
Artigo publicado pelo Observador em 2025/05/09, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.