João Luís Pinto .
No epílogo da crise das dívidas soberanas e da crise do crédito subprime que todos ainda temos na memória, e olhando para o que fora feito para as ultrapassar, poucas mas avisadas vozes ergueram-se para assinalar que, com a estratégia que fora seguida de empurrar os problemas originados pelas mesmas para um futuro indeterminado, a mais que provável crise que lhes sucederia subiria de nível: de afectar essencialmente bancos comerciais e de investimento e governos nacionais, passaria a afectar Bancos Centrais e zonas monetárias.
Pois aqui está ela. Depois de pouco mais de uma década volvida, em que convivemos num e noutro lado do Oceano Atlântico com agressivos programas de quantitative easing e com as profissões de fé do governador Mario Draghi de fazer “whatever it takes” para salvar a União Europeia e a Zona Euro – acabando por intervir com a sua famosa bazooka nos mercados de dívida soberana e de obrigações -, acabámos enredados no Covid19 e a assistir, em resposta às repercussões na sociedade e na economia das iniciativas que foram tomadas no seu seguimento, ao nascimento no seio da União Europeia de Programas de Recuperação e Resiliência, alimentados pela novidade da emissão de dívida comunitária, e de programas de helicopter money justificados pelos mesmos argumentos e em franca expansão.
Numa década de massivos incrementos de massa monetária determinados por esta actuação e por estas iniciativas, conviveu-se com aparente bonomia – e até, em certa medida, com euforia e entusiasmo (mas com muito pouca crítica pública) – com os mais diversos fenómenos económicos inéditos e, no mínimo, bizarros. Fenómenos como o de taxas de juro negativas em emissões de dívida pública (que fizeram o seu caminho natural até taxas de juro negativas em créditos bancários) mereceram até na altura uma primeira alteração da legislação da actualização das pensões de reforma, face à iminência de as mesmas serem cortadas de forma automática por essa via. Ou fenómenos como o da quantidade massiva de dívida soberana e de obrigações emitidas nos estados-membros que acabou adquirida e monetizada no balanço do Banco Central Europeu.
A embriaguez da criação de dinheiro fácil por decisão política fez mais uma vez com que esquecêssemos a História e as suas lições, teimando em repetir os erros passados.
Durante a crise de hiper-inflação que assolou a Alemanha, fará por esta altura 100 anos, houve episódios olhados com a mesma sobranceria com que se vai analisando estes fenómenos recentes. Parece ainda hoje difícil de acreditar que não tivessem soado os alarmes na altura em que foram vividos. Desde o facto de governos regionais, municípios e até grandes empresas terem sido autorizados a emitir Moeda – “Notgeld” -, passando pelo facto de toda a dívida pública emitida ser de imediato adquirida e monetizada pelo Banco Central, até à aceitação socialmente tranquila de que as únicas greves e paralisações que estavam liminarmente fora de questão eram as dos funcionários que diariamente imprimiam e distribuíam quantidades crescentes e cada vez mais imensas de notas, tudo foi relevado e tido como normal e expectável aos olhos de quem convivia com esta realidade.
Aliás, praticamente até ao final da crise, a tese dominante era de que a depreciação do poder de compra da moeda era originada por uma “guerra cambial” conduzida pelos Aliados que haviam derrotado a Alemanha na Grande Guerra, e pelo peso das pesadas reparações que tinham sido impostas na sequência do seu fim.
É até agora um pouco irónico que um dos maiores momentos de ruptura social derivado do fenómeno inflacionista que então avançava impiedosamente, sinalizando o bater no fundo da conduta adoptada, tenha sido a conclusão generalizada de que, queimando as notas em circulação, se obtinha mais energia e calor para aquecer as casas do que usando as mesmas notas para comprar combustível para esse efeito. Fraco consolo que agora, em tempos de desmaterialização da Moeda e dos seus usos e num cenário de acesso dificultado a fontes de energia, já não nos resta e a que estamos despojados de também poder recorrer.
Instalada que está pois a subida de preços, a bebedeira continua. Retórica de que “é a guerra” ou “foi o Covid” continua a vender ilusões ébrias e a tentar dissipar a memória das decisões que foram tomadas e apoiadas num passado bem recente, mas que se aposta em pintar como distante. Com a vã ilusão de que é possível criar riqueza e posteriormente distribuí-la criando moeda e disseminando-a, rompeu-se o sacrossanto compromisso essencial de que esta é reserva e testemunho estável e reconhecido de valor. Afinal, se a criação de moeda passa a ser vista como um exercício voluntário e como uma mera expressão de vontade, é natural que os utilizadores dessa moeda a vejam dissociar-se de conceitos como valor e reserva ou como uma alternativa estável, confiável e apetecível à sua propriedade, ao seu tempo ou ao seu trabalho.
E agora? Numa altura em que seria de esperar medidas de promoção da destruição dos excessos de massa monetária criados, de reposição da confiança e da credibilidade das moedas, que possibilitassem caminhar paulatinamente para um novo equilíbrio estável de preços por reajuste e reacção da Economia aos erros que foram cometidos, a receita anunciada e reivindicada mais uma vez parece ser querer apagar o fogo lançando-lhe gasolina (ou gás, ou outro combustível que seja politicamente correcto e aceite em tempos de transição energética).
Quando a tónica deveria ser o aumento substancial de taxas de juro pelos Bancos Centrais, e em alternativa assistimos a pífios aumentos – com uma notória ausência de reconhecimento de culpas e actos de contrição pelos erros do passado-, quando se deveria estar a falar de grandes reduções de impostos de forma a evitar que o enorme aumento de receitas do estado, mesmo que transitório, dê todos os sinais errados à Economia e se repercuta na generalidade dos preços por eles afectados, assistimos a todo um conjunto de medidas pró-cíclicas perfeitamente demonstrativas do tipo de mentalidade que se criou.
É a distribuição de “cheques”, a antecipação de reformas e dos seus aumentos ou os aumentos salariais (imediatamente consumidos pela voracidade da subida de preços). É a possibilidade de (novamente) se poder vir a descontar em sede de IRS os montantes dos pagamentos associados a empréstimos bancários para a compra de habitação. É o regresso das tarifas reguladas na Energia com todo um risco associado bem real de criação de gigantescos défices tarifários que alguém (como sempre, há bons indícios de quem será…) pagará no futuro. Toda uma panóplia de autênticos exemplos do que não fazer que ameaçam tornar rapidamente bastante mais sombrios (e duradouros) os tempos que se avizinham.
A realidade actual ainda não é, obviamente, a do pico da hiper-inflação da Alemanha de há 100 anos atrás. Mas tem uma muito maior dimensão geográfica e atinge um número enormemente maior de pessoas. A capacidade dos Bancos Centrais interferirem e intervirem na vida de um tão grande número de pessoas é hoje em dia muito maior e mais poderosa. O facto de ainda não vivermos uma situação nos mesmos moldes que se viveram dá-nos ao menos a esperança de que, haja vontade de resolver o problema presente da inflação e de não tirar dele vantagem (porque há os que o conseguem), muito provavelmente ainda estamos em tempo de fazer o correcto para o resolver.
A dor em o fazer já é, contudo, inevitável. Esperemos que não seja por falta de coragem e de resolução ou por puro oportunismo que a mesma não venha a ser insuportavelmente agravada.
Artigo publicado pelo Observador em 2022/11/04, integrado na coluna semanal da Oficina da Liberdade.